São Paulo, terça-feira, 10 de junho de 2008

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Mutarelli compõe "monstro humano"

Escritor diz que quis "viver fisicamente" o personagem que criou em livro: "Passei a me ver mais nele do que eu queria'

Para escritor, protagonista da trama de "O Natimorto" é "o contrário" do personagem central de "O Cheiro do Ralo", que também virou filme

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Os atores Lourenço Mutarelli e Simone Spoladore (na cama), cercados pela equipe de filmagem de "O Natimorto', ensaiam cena ambientada num quarto de hotel para o longa de Paulo Machline

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

O escritor Lourenço Mutarelli decidiu emprestar seu corpo a um personagem saído de sua imaginação. Na pele do Agente, protagonista de "O Natimorto" (DBA, 2004, 145 págs.), Mutarelli emagreceu sete quilos em três semanas e insiste em se mudar para o set de filmagens.
O diretor Paulo Machline é contra a idéia de ver seu ator enclausurado no esfumaçado quarto de hotel -construído num estúdio na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo- onde o Agente tenta neutralizar o mundo, para viver um amor imune à dor.
Mutarelli percebe o temor inconfesso de Machline. "Ele tem medo de que eu me apaixone pela [atriz] Simone [Spoladore, intérprete da musa do Agente] ou que eu vire um monstro [como o personagem]. Mas eu sei ir e sei voltar", diz.
A viagem ao lado escuro da vida é o tema central de "O Natimorto", segundo romance na carreira do premiado quadrinista Mutarelli. "O Cheiro do Ralo", seu primeiro livro em prosa, foi também levado ao cinema, em longa dirigido por Heitor Dhalia e protagonizado por Selton Mello.
Ao comparar as duas obras, Mutarelli diz que o personagem do Agente "é o contrário" do protagonista de "O Cheiro do Ralo", um comerciante de quinquilharias indiferente aos sentimentos alheios e obcecado por uma garçonete, ou melhor, apenas por uma parte de seu corpo -a bunda.
"Aquele era um personagem detestável de cara. No caso do Agente, ele é frágil e doce no começo. Meu desafio com ele é fazer com que a pessoa perceba humanidade até no monstro."


Tarô e cigarro
Com o casamento em crise, traído pela mulher e apaixonado por uma cantora cujo talento ele é o único a perceber, o Agente cria um paralelo entre as cartas do tarô e as imagens de advertência contra o fumo impressas no verso dos maços de cigarro, que ele consome obsessivamente.
Nesse jogo de interpretações, a figura do natimorto é o ideal do Agente, porque passa de uma vida protegida (no útero) a outra (não decifrada), sendo poupado das hostilidades do convívio mundano.
Embora a teoria do Agente sobre o tarô e o cigarro tenha um papel fundamental na trama do livro, Mutarelli diz que "no filme, esse aspecto é só mais uma das armadilhas de conquista dele".

Quarto de hotel
Uma redoma regada a café e cigarro -um prazer autodestrutivo que o casal tem "a coragem" de se permitir, na avaliação do Agente- é o que ele propõe à cantora, quando a convida para viver num quarto de hotel, do qual jamais sairão.
Ela aceita dividir com o Agente o quarto, mas, ao contrário dele, não abdica de sair à rua. Quanto as interferências externas ameaçam o equilíbrio que ele imaginara para sua exclusiva relação de amor, o Agente desiste de conter seus impulsos destrutivos.
O texto de Mutarelli foi adaptado para o cinema por André Pinho. "Desmascarado" foi como Mutarelli se sentiu diante do roteiro de Pinho. "Ele percebeu coisas que eu estava escondendo de mim", afirma.
A vontade de "viver fisicamente" o personagem do Agente já havia tomado conta de Mutarelli, antes mesmo do roteiro do filme. "Comecei a me identificar com ele quando vi a peça. Passei a me ver mais nele do que eu queria", afirma.
A montagem teatral de "O Natimorto" tem Nilton Bicudo e Maria Manoella nos papéis principais. A peça, dirigida por Mário Bortolotto, reestréia na próxima quinta, no teatro Aliança Francesa (r. General Jardim, 182, Vila Buarque, 0/ xx/11/3188-4141) em temporada às quintas e sextas, até 1º/8.
Esfinge da trama, a musa do Agente é "uma ingênua que vive no reino dos sonhos" na opinião de Simone Spoladore. A atriz diz que aderiu ao filme e à história de Mutarelli porque admira seu modo "contemporâneo de falar da dificuldade que é sonhar junto".


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