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ARIANO SUASSUNA
Almanaque Armorial Brasileiro
Contendo idéias, enigmas,
lembranças, informações, comentários e a narração de casos
acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano
Suassuna.
PRÓLOGO
A esta altura da minha vida, a
roda da Fortuna lançou-me aqui
neste recanto, que vejo ao mesmo
tempo como Palco, Tribuna, Púlpito e Picadeiro-de-Circo. Tenho
dentro de mim um Cangaceiro
manso, um Frade sem burel, um
Professor em retiro, um Cantador
sem repentes e um Palhaço frustrado. Mas Ator, Jornalista e Orador, eu nunca pensara em ser.
Por outro lado, levo muito a sério as palavras dos Poetas. E, certa
vez, estando eu em Taperoá, Sertão da Paraíba, um Cantador, Antonino Coelho de Souza, dedicou-me umas décimas que terminavam dizendo: "Ilustre paraibano,
na redação, na tribuna, garganta
de garaúna, nascido em Taperoá,
é Suassuna e é Vilar, é Vilar e é
Suassuna". E o fato é que, depois
de inventar as Aulas-Espetáculo,
impelido por minha vocação de
Professor e de Ator-circense frustrado, comecei a enfrentar a vida
do palco: era a sina da tribuna,
que, invocada pelos versos do
Poeta, eu tive de terminar cumprindo.
Agora, de um ano para cá, chegou, para mim, a vez da redação.
Confesso que, ao receber o convite, fiquei a um tempo fascinado e
temeroso. A responsabilidade é
grande, porque quem sobe a um
púlpito, a um palco ou a uma tribuna arvora-se, no mínimo, em
meio-profeta e meio-sábio. Eu,
tão cheio de dúvidas, devo comunicar aos outros todas as certezas.
Eu, servo da Beleza subterrânea,
terei que aparecer aqui como se
fosse dono da Verdade.
Por isso, foi diante de um dilema que me vi; e só tinha uma saída para ele: primeiro, confessar
que não estou à altura nem de
uma coisa nem de outra; depois
mostrar que aqui, semanalmente,
de acordo com as venetas e possibilidades do momento, o que vou
fazer é pensar em voz alta e conversar com meus leitores, no
maior descuido e liberdade possíveis. Quantas vezes não já sonhei
em reunir comentários, anedotas,
fatos e divagações numa espécie
de Livro Negro do Cotidiano! Seria como um Almanaque, não me
envergonho de confessá-lo. Volto
a minhas lembranças de menino
sertanejo e a um livro que foi muito importante em minha vida, o
Lunário Perpétuo, publicado, no
século 18, por Jerônimo Cortez
Valenciano. É um livro tão útil
que começa informando a seus
leitores aquilo que pouca gente
sabe -que Deus criou o Mundo
no mês de Setembro (o que me
deixava muito orgulhoso por ser
o mesmo da independência do
Brasil).
Outras coisas extraordinárias
que o Lunário e outros Almanaques sertanejos publicavam eram
contos tragediosos ou comediosos, charadas, cartas-enigmáticas
e todo um receituário para os
mais diversos tipos de doenças e
acidentes. Havia, por exemplo,
uma "Receita para quem, estando
adormecido, se veja na desagradável contingência de acordar
tendo engolido alguma Cobra".
Acho que um ignorante qualquer,
da cidade, só ao tomar conhecimento da catástrofe seria capaz
até de esticar a canela, de medo.
Mas quem, como nós, leu o Lunário saberá como socorrer o acidentado: deve dar a ele uma beberagem feita com "3 onças de Copaíba, 2 oitavas de tintura de Açafrão, « onça de Cúbebas em pó e 6
onças de cozimento de Altéia".
O que eu não sei é se nas Farmácias sem imaginação deste nosso
tempo se encontram ingredientes
de nomes tão maravilhosos. Mas,
se os acharmos, o doente de cobrite está salvo: depois de bebida
metade da infusão, pega-se a outra metade, aplica-se, nele, um
clister pela manhã, outro à noite, e
a Cobra, que tinha entrado pela
boca, sai, infalivelmente, pelo vice-versa.
O Lunário continha também "a
computação dos tempos para as
coisas agrícolas; virtudes medicinais de algumas plantas; socorro
para dar aos envenenados; descrição e tratamento de várias moléstias; receitas úteis e proveitosas;
modos de descobrir as águas; jogos-de-cartas, adivinhações etc.".
Assim, se eu fizer aqui, semanalmente, uma relação das conversas
que ouvi, das idéias que me ocorreram, dos acontecimentos a que
assisti ou que me narraram, das
cartas que recebi, das histórias
que soube ou inventei - enfim,
dos assuntos que no momento estão me apaixonando, talvez o próprio relato termine por dar alguma beleza, alguma ordem, algum
sentido a minha vida: a todo este
amontoado de atos e palavras
que, por natureza, é desordenado,
às vezes angustioso, quase sempre
sem brilho e sem alegria. "A vida
é um sonho", disse um Poeta, espanhol, e que, como todo grande
espanhol, como todo grande brasileiro, como todo grande homem, provavelmente era meio
despilotado do juízo. Ao que logo
ajuntou outro Poeta: "A vida é
um conto, cheio de sons e de fúria, mas que nada significa; um
pobre ator que dá cambalhotas e
logo se retira do palco".
Pois se minha vida é um sonho
-e, talvez, o sonho de um demente!- cuide-se de fazer aqui,
deste pesadelo sujo, feio e sem
graça, uma Festa; uma Dança que,
como a dos Espetáculos populares brasileiros, tenha seus mantos
e golas recobertos de vidrilhos e
lantejoulas; alegre e ensolarada
aqui, noturna, sagrada e bela acolá; religiosa e compassiva, em sua
profanidade; luzida e intrépida
em sua vitória sobre a feiúra, o sofrimento e a injustiça. Uma Festa
na qual caibam as coisas mais diferentes: o brilhante e o monstruoso; o insólito e o trivial; o grotesco e o terrível; o trágico e o cômico; a emoção e a bufoneria. Assim o que minha vida teve, e tem,
de morno, de indiferente, de incaracterístico, de errado e de feio,
terminará cicatrizado e talvez até
perdoado, pela Arte, na bela e fecunda unidade-de-contrastes do
conjunto. (Continua na próxima
semana.)
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