São Paulo, Segunda-feira, 10 de Julho de 2000
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ARIANO SUASSUNA

Almanaque Armorial Brasileiro

Contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna.

PRÓLOGO

A esta altura da minha vida, a roda da Fortuna lançou-me aqui neste recanto, que vejo ao mesmo tempo como Palco, Tribuna, Púlpito e Picadeiro-de-Circo. Tenho dentro de mim um Cangaceiro manso, um Frade sem burel, um Professor em retiro, um Cantador sem repentes e um Palhaço frustrado. Mas Ator, Jornalista e Orador, eu nunca pensara em ser.
Por outro lado, levo muito a sério as palavras dos Poetas. E, certa vez, estando eu em Taperoá, Sertão da Paraíba, um Cantador, Antonino Coelho de Souza, dedicou-me umas décimas que terminavam dizendo: "Ilustre paraibano, na redação, na tribuna, garganta de garaúna, nascido em Taperoá, é Suassuna e é Vilar, é Vilar e é Suassuna". E o fato é que, depois de inventar as Aulas-Espetáculo, impelido por minha vocação de Professor e de Ator-circense frustrado, comecei a enfrentar a vida do palco: era a sina da tribuna, que, invocada pelos versos do Poeta, eu tive de terminar cumprindo.
Agora, de um ano para cá, chegou, para mim, a vez da redação. Confesso que, ao receber o convite, fiquei a um tempo fascinado e temeroso. A responsabilidade é grande, porque quem sobe a um púlpito, a um palco ou a uma tribuna arvora-se, no mínimo, em meio-profeta e meio-sábio. Eu, tão cheio de dúvidas, devo comunicar aos outros todas as certezas. Eu, servo da Beleza subterrânea, terei que aparecer aqui como se fosse dono da Verdade.
Por isso, foi diante de um dilema que me vi; e só tinha uma saída para ele: primeiro, confessar que não estou à altura nem de uma coisa nem de outra; depois mostrar que aqui, semanalmente, de acordo com as venetas e possibilidades do momento, o que vou fazer é pensar em voz alta e conversar com meus leitores, no maior descuido e liberdade possíveis. Quantas vezes não já sonhei em reunir comentários, anedotas, fatos e divagações numa espécie de Livro Negro do Cotidiano! Seria como um Almanaque, não me envergonho de confessá-lo. Volto a minhas lembranças de menino sertanejo e a um livro que foi muito importante em minha vida, o Lunário Perpétuo, publicado, no século 18, por Jerônimo Cortez Valenciano. É um livro tão útil que começa informando a seus leitores aquilo que pouca gente sabe -que Deus criou o Mundo no mês de Setembro (o que me deixava muito orgulhoso por ser o mesmo da independência do Brasil).
Outras coisas extraordinárias que o Lunário e outros Almanaques sertanejos publicavam eram contos tragediosos ou comediosos, charadas, cartas-enigmáticas e todo um receituário para os mais diversos tipos de doenças e acidentes. Havia, por exemplo, uma "Receita para quem, estando adormecido, se veja na desagradável contingência de acordar tendo engolido alguma Cobra". Acho que um ignorante qualquer, da cidade, só ao tomar conhecimento da catástrofe seria capaz até de esticar a canela, de medo. Mas quem, como nós, leu o Lunário saberá como socorrer o acidentado: deve dar a ele uma beberagem feita com "3 onças de Copaíba, 2 oitavas de tintura de Açafrão, « onça de Cúbebas em pó e 6 onças de cozimento de Altéia".
O que eu não sei é se nas Farmácias sem imaginação deste nosso tempo se encontram ingredientes de nomes tão maravilhosos. Mas, se os acharmos, o doente de cobrite está salvo: depois de bebida metade da infusão, pega-se a outra metade, aplica-se, nele, um clister pela manhã, outro à noite, e a Cobra, que tinha entrado pela boca, sai, infalivelmente, pelo vice-versa.
O Lunário continha também "a computação dos tempos para as coisas agrícolas; virtudes medicinais de algumas plantas; socorro para dar aos envenenados; descrição e tratamento de várias moléstias; receitas úteis e proveitosas; modos de descobrir as águas; jogos-de-cartas, adivinhações etc.". Assim, se eu fizer aqui, semanalmente, uma relação das conversas que ouvi, das idéias que me ocorreram, dos acontecimentos a que assisti ou que me narraram, das cartas que recebi, das histórias que soube ou inventei - enfim, dos assuntos que no momento estão me apaixonando, talvez o próprio relato termine por dar alguma beleza, alguma ordem, algum sentido a minha vida: a todo este amontoado de atos e palavras que, por natureza, é desordenado, às vezes angustioso, quase sempre sem brilho e sem alegria. "A vida é um sonho", disse um Poeta, espanhol, e que, como todo grande espanhol, como todo grande brasileiro, como todo grande homem, provavelmente era meio despilotado do juízo. Ao que logo ajuntou outro Poeta: "A vida é um conto, cheio de sons e de fúria, mas que nada significa; um pobre ator que dá cambalhotas e logo se retira do palco".
Pois se minha vida é um sonho -e, talvez, o sonho de um demente!- cuide-se de fazer aqui, deste pesadelo sujo, feio e sem graça, uma Festa; uma Dança que, como a dos Espetáculos populares brasileiros, tenha seus mantos e golas recobertos de vidrilhos e lantejoulas; alegre e ensolarada aqui, noturna, sagrada e bela acolá; religiosa e compassiva, em sua profanidade; luzida e intrépida em sua vitória sobre a feiúra, o sofrimento e a injustiça. Uma Festa na qual caibam as coisas mais diferentes: o brilhante e o monstruoso; o insólito e o trivial; o grotesco e o terrível; o trágico e o cômico; a emoção e a bufoneria. Assim o que minha vida teve, e tem, de morno, de indiferente, de incaracterístico, de errado e de feio, terminará cicatrizado e talvez até perdoado, pela Arte, na bela e fecunda unidade-de-contrastes do conjunto. (Continua na próxima semana.)



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