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CRÍTICA
"House" retrata desumanização da medicina
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
A medid a que "ER" vai definhando -a saída do doutor John Carter (Noah Wyle), o
último remanescente do elenco
original, no final da 11ª temporada, é daqueles golpes irrecuperáveis-, o filão "drama médico"
vai sendo preenchido por séries
que experimentam novas maneiras de encarar a medicina.
Do escracho de "Scrubs", uma
espécie de "ER" do mundo bizarro, ao "Medical Investigation", a
medicina, em si, é reverenciada e
tida em altíssima conta. Mesmo
em uma comédia como
"Scrubs", no fundo a paródia não
se dirige à ciência médica em si, e
sim a quem a pratica. "Medical
Investigation", por sua vez, pende para o detetivesco, mas ainda
assim trata a medicina com uma
espécie de respeito solene.
"House", do Universal Channel, vai em sentido contrário.
House e sua equipe são especialistas em casos difíceis, doenças
com sintomas confusos e ambíguos. Uma espécie de gênio intuitivo, dr. House tem língua ferina e não se importa com qualquer outro aspecto do paciente, a
não ser no desafio intelectual que
a doença representa.
Com uma pitada de cinismo
emprestada do finado "Becker",
dr. House é um personagem que
ao mesmo tempo repugna por
seu individualismo extremo e é
admirável pela inteligência e pelo
fato de ser (quase) completamente livre. Quase porque, por
mais sofisticado - e o de "House" o é- que possa ser um texto
para televisão, a idéia de um personagem livre é quase que avessa
às regras do veículo.
A misoginia do personagem é
notável e, nesse sentido, mais
uma vez ele se aproxima do Becker de Ted Danson. Só que enquanto Becker, médico de uma
clínica modesta no Queens, usava a falta de empatia pelo outro
como forma de lançar um olhar
crítico (e engraçado, porque o
médico, apesar de sua acidez, era
também patético) sobre as neuroses urbanas, em "House" o negócio é mais embaixo. O horror
do humano, expressado em diálogos cortantes e tiradas cruéis, é
um sintoma de uma desumanização mais profunda e radical,
não apenas da medicina, mas de
toda a contemporaneidade.
No seriado, a medicina é uma
espécie de quebra-cabeças, em
que a última coisa que está em jogo é a vida ou o bem-estar do
doente. Antes, vem a soberba dos
médicos, as disputas narcísicas
entre médicos diferentes, os relacionamentos promíscuos entre
médicos e representantes da indústria farmacêutica etc. etc.
Nada, portanto, do altruísmo e
da dedicação da equipe do
County Hospital de Chicago de
"ER", mas, provavelmente, muito mais próximo da realidade da
medicina mercantilizada no
mundo inteiro.
A eficiência da série deve-se sobretudo à qualidade do texto, como já disse, mas também ao ator
Hugh Laurie. Com uma cara genérica de vilão coadjuvante e
uma expressão constantemente
sardônica, Laurie consegue a justa medida para construir esse
personagem a um tempo brilhante e repulsivo.
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