São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005

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CRÍTICA

"House" retrata desumanização da medicina

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

A medid a que "ER" vai definhando -a saída do doutor John Carter (Noah Wyle), o último remanescente do elenco original, no final da 11ª temporada, é daqueles golpes irrecuperáveis-, o filão "drama médico" vai sendo preenchido por séries que experimentam novas maneiras de encarar a medicina.
Do escracho de "Scrubs", uma espécie de "ER" do mundo bizarro, ao "Medical Investigation", a medicina, em si, é reverenciada e tida em altíssima conta. Mesmo em uma comédia como "Scrubs", no fundo a paródia não se dirige à ciência médica em si, e sim a quem a pratica. "Medical Investigation", por sua vez, pende para o detetivesco, mas ainda assim trata a medicina com uma espécie de respeito solene.
"House", do Universal Channel, vai em sentido contrário. House e sua equipe são especialistas em casos difíceis, doenças com sintomas confusos e ambíguos. Uma espécie de gênio intuitivo, dr. House tem língua ferina e não se importa com qualquer outro aspecto do paciente, a não ser no desafio intelectual que a doença representa.
Com uma pitada de cinismo emprestada do finado "Becker", dr. House é um personagem que ao mesmo tempo repugna por seu individualismo extremo e é admirável pela inteligência e pelo fato de ser (quase) completamente livre. Quase porque, por mais sofisticado - e o de "House" o é- que possa ser um texto para televisão, a idéia de um personagem livre é quase que avessa às regras do veículo.
A misoginia do personagem é notável e, nesse sentido, mais uma vez ele se aproxima do Becker de Ted Danson. Só que enquanto Becker, médico de uma clínica modesta no Queens, usava a falta de empatia pelo outro como forma de lançar um olhar crítico (e engraçado, porque o médico, apesar de sua acidez, era também patético) sobre as neuroses urbanas, em "House" o negócio é mais embaixo. O horror do humano, expressado em diálogos cortantes e tiradas cruéis, é um sintoma de uma desumanização mais profunda e radical, não apenas da medicina, mas de toda a contemporaneidade.
No seriado, a medicina é uma espécie de quebra-cabeças, em que a última coisa que está em jogo é a vida ou o bem-estar do doente. Antes, vem a soberba dos médicos, as disputas narcísicas entre médicos diferentes, os relacionamentos promíscuos entre médicos e representantes da indústria farmacêutica etc. etc.
Nada, portanto, do altruísmo e da dedicação da equipe do County Hospital de Chicago de "ER", mas, provavelmente, muito mais próximo da realidade da medicina mercantilizada no mundo inteiro.
A eficiência da série deve-se sobretudo à qualidade do texto, como já disse, mas também ao ator Hugh Laurie. Com uma cara genérica de vilão coadjuvante e uma expressão constantemente sardônica, Laurie consegue a justa medida para construir esse personagem a um tempo brilhante e repulsivo.

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