São Paulo, segunda-feira, 10 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Crime sem castigo

O crime, em especial o violento, tem lógica própria e não redutível a fatores externos

UM CRIME misterioso em São Paulo, o assassinato, sem causa aparente, de um empresário ou executivo que, em uma manhã, saía de casa em seu carro, foi, como costuma acontecer, elucidado, mais tarde, por acaso. Quando, devido à falta de pistas, o caso já devia estar arquivado, o perpetrador, perseguido por outro delito, uma vez capturado, confessou à polícia também (espontaneamente, é claro) o anterior.
Ele abordara, com a intenção apenas de lhe roubar o automóvel, a vítima. O proprietário deste, com a calma e sangue frio dos convivas descritos por Rubem Fonseca em seu conto "Feliz Ano Novo", reagiu civilizadamente, disposto não só a entregar o veículo (que decerto estava no seguro) como a prosseguir, a despeito do pequeno transtorno matutino, sua rotina normal.
Segundo testemunho do assassino, sua presa cometera, no entanto, um erro cujas conseqüências mal pode ter tido tempo de avaliar em seus últimos segundos.
Pretendendo acalmar o assaltante, chamou-o de "meu amigo". O criminoso tomou tal ensaio de intimidade como um insulto, e, agindo segundo os ditames de sua ética profissional, abateu o pretenso "amigo". Justificando, durante a confissão, o ato como reação lógica a tamanho desrespeito, ele desabafou: "Eu estou roubando o carro do sujeito e ele me chama de amigo! Com que cara isso me deixaria diante da minha turma?"
Que o crime, especialmente suas variantes violentas, tem uma lógica própria e não redutível a fatores externos é algo que ninguém dotado de bom senso ignora. Talvez a melhor prova de que não dá certo buscar explicá-lo exclusivamente por meio de causas econômicas seja o fato de que, nas últimas décadas, aqueles que se valiam dele como álibi para implementar projetos sócio-políticos deixaram, sorrateiramente, de associá-lo à pobreza, passando a atribuí-lo à desigualdade. Por quê?
Primeiro, porque, mesmo em sociedades afluentes cujos membros menos abastados nada têm de miseráveis, seguem existindo crimes sangrentos e, assim, nem sequer a erradicação da miséria clássica como a descrita pelos Zolas e Górkis resolve magicamente o problema. E, segundo, porque não sendo essas sociedades afluentes particularmente igualitárias (há, aliás, uma oposição conhecida e verificável entre igualitarismo e afluência), responsabilizar a desigualdade de renda e status (legitimando, em outras palavras, a inveja) tornou-se uma desculpa adequada para quem continue a defender tal ou qual programa reformista ou revolucionário.
(Se algumas nações igualitárias -a URSS, a China maoísta, o Camboja do Khmer Vermelho, a Coréia do Norte, a Cuba de Fidel- conseguiram, de quando em quando, minimizar os níveis de criminalidade privada, foi porque nelas o Estado detinha ou detém até o monopólio da violência ilegítima.)
Mais contraditório, porém, do que o raciocínio que faz a criminalidade decorrer unilateralmente da distribuição da riqueza, é o pensamento que a entende como uma espécie de anormalidade ou desvio, algo de que pessoas normais, educadas, civilizadas etc. não seriam capazes. Se ambas as maneiras de formular a questão convergem, então chegamos ao pior dos mundos possíveis: o nosso.
Desde os primórdios do Iluminismo, no século 18, advogados e filósofos, juristas e pensadores, reformadores sociais e agitadores políticos repetem e refinam uma idéia fixa: a de que assaltos e homicídios, estupros e agressões variadas não passariam de reflexos, no comportamento de indivíduos inocentes e permeáveis, de tensões e conflitos, de desajustes e de um meio ambiente pelo qual nenhum deles é, a rigor, responsável. Responsabilizá-los por suas ações e, o que é mais grave, puni-los por elas equivaleriam, já que os culpados aparentes são antes as vítimas, a uma imensa injustiça. Como castigar os supostos criminosos e deixar os autênticos malfeitores, todo o restante perverso da sociedade, escaparem?
Se o grosso dos cidadãos, no fundo da alma, não pensa assim, as elites que ditam o que é certo ou errado, o que é civilizado ou bárbaro, concordam com essas premissas e as conduzem a conclusões quase sempre uniformes.
Pervertendo um ideário originalmente bem-intencionado, o dos direitos humanos, o que subjaz à sua visão de mundo consiste menos numa generosidade piedosa (às custas dos outros) do que numa arrogância que, negando aos demais o direito e a capacidade de assumirem a conseqüência do que façam, desumaniza inclusive os criminosos.


Texto Anterior: Livro examina universo do mangá
Próximo Texto: Artes plásticas: Guggenheim abrirá museu nos Emirados Árabes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.