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NELSON ASCHER
Crime sem castigo
O crime, em especial o violento, tem lógica própria e não redutível a fatores externos
UM CRIME misterioso em São
Paulo, o assassinato, sem
causa aparente, de um empresário ou executivo que, em uma
manhã, saía de casa em seu carro,
foi, como costuma acontecer, elucidado, mais tarde, por acaso. Quando,
devido à falta de pistas, o caso já devia estar arquivado, o perpetrador,
perseguido por outro delito, uma
vez capturado, confessou à polícia
também (espontaneamente, é claro) o anterior.
Ele abordara, com a intenção apenas de lhe roubar o automóvel, a vítima. O proprietário deste, com a calma e sangue frio dos convivas descritos por Rubem Fonseca em seu
conto "Feliz Ano Novo", reagiu civilizadamente, disposto não só a entregar o veículo (que decerto estava
no seguro) como a prosseguir, a despeito do pequeno transtorno matutino, sua rotina normal.
Segundo testemunho do assassino, sua presa cometera, no entanto,
um erro cujas conseqüências mal
pode ter tido tempo de avaliar em
seus últimos segundos.
Pretendendo acalmar o assaltante, chamou-o de "meu amigo". O criminoso tomou tal ensaio de intimidade como um insulto, e, agindo segundo os ditames de sua ética profissional, abateu o pretenso "amigo".
Justificando, durante a confissão, o
ato como reação lógica a tamanho
desrespeito, ele desabafou: "Eu estou roubando o carro do sujeito e ele
me chama de amigo! Com que cara
isso me deixaria diante da minha
turma?"
Que o crime, especialmente suas
variantes violentas, tem uma lógica
própria e não redutível a fatores externos é algo que ninguém dotado
de bom senso ignora. Talvez a melhor prova de que não dá certo buscar explicá-lo exclusivamente por
meio de causas econômicas seja o fato de que, nas últimas décadas,
aqueles que se valiam dele como álibi para implementar projetos sócio-políticos deixaram, sorrateiramente, de associá-lo à pobreza, passando
a atribuí-lo à desigualdade. Por quê?
Primeiro, porque, mesmo em sociedades afluentes cujos membros
menos abastados nada têm de miseráveis, seguem existindo crimes
sangrentos e, assim, nem sequer a
erradicação da miséria clássica como a descrita pelos Zolas e Górkis
resolve magicamente o problema. E,
segundo, porque não sendo essas sociedades afluentes particularmente
igualitárias (há, aliás, uma oposição
conhecida e verificável entre igualitarismo e afluência), responsabilizar a desigualdade de renda e status
(legitimando, em outras palavras, a
inveja) tornou-se uma desculpa adequada para quem continue a defender tal ou qual programa reformista
ou revolucionário.
(Se algumas nações igualitárias
-a URSS, a China maoísta, o Camboja do Khmer Vermelho, a Coréia
do Norte, a Cuba de Fidel- conseguiram, de quando em quando, minimizar os níveis de criminalidade
privada, foi porque nelas o Estado
detinha ou detém até o monopólio
da violência ilegítima.)
Mais contraditório, porém, do que
o raciocínio que faz a criminalidade
decorrer unilateralmente da distribuição da riqueza, é o pensamento
que a entende como uma espécie de
anormalidade ou desvio, algo de que
pessoas normais, educadas, civilizadas etc. não seriam capazes. Se ambas as maneiras de formular a questão convergem, então chegamos ao
pior dos mundos possíveis: o nosso.
Desde os primórdios do Iluminismo, no século 18, advogados e filósofos, juristas e pensadores, reformadores sociais e agitadores políticos
repetem e refinam uma idéia fixa: a
de que assaltos e homicídios, estupros e agressões variadas não passariam de reflexos, no comportamento de indivíduos inocentes e permeáveis, de tensões e conflitos, de
desajustes e de um meio ambiente
pelo qual nenhum deles é, a rigor,
responsável. Responsabilizá-los por
suas ações e, o que é mais grave, puni-los por elas equivaleriam, já que
os culpados aparentes são antes as
vítimas, a uma imensa injustiça. Como castigar os supostos criminosos
e deixar os autênticos malfeitores,
todo o restante perverso da sociedade, escaparem?
Se o grosso dos cidadãos, no fundo
da alma, não pensa assim, as elites
que ditam o que é certo ou errado, o
que é civilizado ou bárbaro, concordam com essas premissas e as conduzem a conclusões quase sempre
uniformes.
Pervertendo um ideário originalmente bem-intencionado, o dos direitos humanos, o que subjaz à sua
visão de mundo consiste menos numa generosidade piedosa (às custas
dos outros) do que numa arrogância
que, negando aos demais o direito e
a capacidade de assumirem a conseqüência do que façam, desumaniza
inclusive os criminosos.
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