São Paulo, sexta, 10 de julho de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
Pênaltis, identidade e o patriotismo orgânico

GERALD THOMAS
em Nova York

"Pega ele! Pega ele! Derruba ele!", berrava um brasileiro enrolado na bandeira, todas as vezes em que um jogador holandês se aproximava da área brasileira. Magro, jovem, cara pintada e cabelos tingidos de verde e amarelo, seu corpo se contraía, e lágrimas jorravam de seus olhos enquanto urrava, como se fosse um soldado enfiado numa trincheira, pronto para jogar sua última granada.
Uma menina nervosa, que andava em círculos sem conseguir fixar seu olhar na tela da televisão localizada dentro do bar, tentava acalmá-lo: "Que é isso, cara, isso não é uma guerra!". "É guerra, sim!", ecoavam outros, "é isso mesmo, tem que derrubar!".
Numa calçada no centro de Manhattan, a cena era surreal. Alguns americanos completamente alheios à Copa do Mundo atravessavam a rua, com medo daquela "tribo" pintada com cores exóticas, intoxicada por um estranho ritual estranhamente organizado.
Poucos policiais, algumas câmeras e gente de todas as cores sofriam com o desenrolar da prorrogação.
"O que estou fazendo aqui?", eu me perguntava um pouco encabulado por estar ali, assistindo a isso tudo do conforto recluso de um automóvel, encostado na beira da calçada de um bar brasileiro da rua 46. Muito nervoso, eu não assistia o jogo em si, preferindo receber a notícia de um gol brasileiro por meio da exaltação do povo na calçada. Sem coragem de ver o desenrolar da partida em casa, saí em busca de companhia, de gente que compartilhava a minha agonia. Assim como numa guerra, aqui esquecemos nossas diferenças e classes sociais e nos rendemos, plenamente, a essa paixão. E, como se estivesse em plena guerra, eu queria me unir a essa "identidade nacional", tão rara nos dias de hoje, tão anonimizada pela globalização, tão fora de moda.
O grupo imenso de "não-convidados" enchia a calçada e se espremia contra a porta de vidro fechada do bar, tentando ver as imagens que brilhavam na tela. Lembrava uma cena do Maracanã, daquela turma que fica lá embaixo, exilada, separada do campo por uma grade, a famosa "geral". "Será que fico aqui no carro?", eu perguntava em voz alta. "É, acho melhor, mais "seguro'."
De repente, enxergo um amigo na multidão e vou correndo ao encontro dele. Era Liszt Vieira, ex-exilado, ex-deputado e hoje um professor universitário estagiando na Columbia University. "Que loucura", dizia ele, "esse pessoal está me lembrando um grupo de prisioneiros espremidos contra as grades da prisão".
Eu sabia que iria encontrá-lo ali, pois o conheço desde os anos 70, quando eu trabalhava na Anistia Internacional em Londres como voluntário, responsável pelos presos políticos, desaparecidos e exilados brasileiros.
Liszt, que sabe muito bem o que é ser espremido contra as grades, foi expulso do Brasil nos anos 60, por acreditar num patriotismo diferente daquele exercido pelos generais da ditadura, mas muito semelhante a esse que ora vemos em pleno funcionamento nessa calçada, um patriotismo orgânico, uma espécie de manifestação viva e exuberante da preservação de uma identidade nacional.
"Ninguém está mais disposto a morrer pela pátria, uma noção furada que envelheceu", dizia Liszt, eufórico, "mas, pelo menos, de quatro em quatro anos, esse evento nos faz lembrar que somos brasileiros e morremos na alma, se o país perder". "Não vai perder", eu interrompia, "pelo amor de Deus, não pode perder!". Calmo como um mestre zen, Liszt apertava a minha mão e dizia, confiante: "O Brasil vai ganhar!".
Dias antes, ele e eu havíamos nos espremido contra as grades de um píer abandonado do East River, para ver o show patrioticamente deslumbrante de fogos de artifício, em comemoração do 4 de julho, a independência americana. "O que a gente está fazendo aqui?", eu perguntava a ele, enquanto os fogos coloriam o céu de Manhattan. "Estamos vendo uma espécie de Copa americana, que tem rumo, data certa e não perde nunca. E essa é parte da beleza da identidade americana", concluía.
De fato. A tal "imagem" do Brasil fica ótima em época de Copa. Fica pop.
Lembra coisas boas, coisas jovens. O Brasil vira uma espécie de igual, as gritantes diferenças sociais e econômicas entre ele e os EUA parecem atingir aquele estranho patamar de idolatria e irmandade que os países do Primeiro Mundo têm entre si. Todos passam a gostar do Brasil. Nesses momentos, não se publicam artigos sobre a devastação da Amazônia ou sobre a absurda injustiça social do país. Nesse momento, o Brasil tem uma cara jovem, simpática, uma cara talentosa, forte e virtuosa, que o americano adora.
"Pega ele! Pega ele!", gritava nosso magro soldado. Nos minutos finais da prorrogação, a tensão era tão grande que o coro aderia: "Pega ele! Pega ele!".
De repente, na multidão, outra cara conhecida, outro amigo, um judeu desterrado como eu, Daniel Feingold, um pintor brasileiro que mora aqui. "Cara, não aguentei ficar em casa. Depois do gol da Holanda, estou precisando de companhia." "Meu Deus, o que estamos fazendo aqui?", perguntava, desnorteado, Daniel.
"Isso é maior que eu, é incontrolável, é de dar febre. Que sofrimento!", desabafava, e foi se espremer contra o vidro, em busca de uma olhada no monitor.
Finalmente, os pênaltis. Não deve haver momento mais tenso no futebol, pois o ritmo pára, tudo pára, e os jogadores se mostram vulneráveis. Os heróis se tornam humanos, e a platéia silencia. Taffarel, uma espécie de prisioneiro na frente da grade de corda, está em close total. Como se estivesse para ser morto por um pelotão de fuzilamento, Taffarel podia nos trazer o grito de independência, ou a morte.
"Calma", dizia Liszt, "a sorte está com a gente". Daniel desistira de se espremer contra o vidro e olhava os carros passando na rua. Do meio do absoluto silêncio do povo, o corpo frágil do nosso "soldado" se ajoelhava no chão e, pela primeira vez, sussurrava: "Vai, cara, salva a nossa vida".
Não consegui conter as lágrimas. Mesmo de pé, nossas almas estavam todas ajoelhadas, criando sonhos, fazendo promessas e honrando nossos mitos humildes, assim como os gregos faziam em suas tragédias. Quem passava por aquela calçada, naquele momento, deve ter sentido que o fim do mundo estava perto.
Eu nunca senti nada assim. Já passei por várias Copas e sempre optei por ficar sozinho, sofrer sozinho, decretar meu estado de calamidade longe do olhar público. Pela primeira vez, eu não soube me comportar. Pela primeira vez na vida, acho que rezei.
E, quando Taffarel jogou a bola para o lado, todas as nossas almas de joelhos no chão de Manhattan sentiram um breve momento de identificação com aquilo que há de mais sublime, a honra de possuirmos uma identidade poderosa, jovem, inexperiente, imatura, cheia de erros, mas aberta e generosa. Esse sentimento nenhuma distância pode atrapalhar, nenhuma fronteira pode definir, nenhum governo pode impor.
Sim, a Copa é a nossa guerra, e nossos heróis não serão confinados a túmulos do soldado desconhecido.
Obrigado, Taffarel. Muito, muito obrigado.

E-Mail: geraldthomas@uol.com.br



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