São Paulo, terça-feira, 10 de agosto de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA ERUDITO

Freire e OSB extra em sutileza de Beethoven

Nada no concerto transparece a tendinite recente do pianista, que imprimiu musicalidade delicada e decidida


COM NELSON FREIRE, TUDO VIROU UM INSTRUMENTO SÓ, CAPAZ DE ESCULPIR CADA ONDA SONORA COM A MATÉRIA FINA DA VIDA


SIDNEY MOLINA
CRÍTICO DA FOLHA

Como bis, a repetição do "Andante" do "Concerto para Piano nº 4" de Beethoven (1770-1827), justamente o movimento mais singelo do programa.
Conforme o maestro Minczuk -titular da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB)- respondia aos gestos sonoros de Nelson Freire, mais o pianista imprimia novas sutilezas e gradações às frases. Nada no concerto deste domingo na Sala São Paulo faria pensar que uma tendinite recente fez com que Freire desmarcasse diversas apresentações ao redor do mundo. Seu Beethoven saiu perfeito, rejuvenescido, sem qualquer desgaste.
A musicalidade de Freire é ao mesmo tempo delicada e decidida. Inspirada em Guiomar Novaes (1894-1979), é matizada ao extremo, jamais rompe com o fluxo temporal. Roberto Minczuk, por outro lado, conhece como poucos a acústica da sala e é como se tivesse colocado a OSB dentro do piano, ressoando com ele, em total interação.
O público queria, de fato, ouvir e ver Nelson Freire. Mas, antes de tudo, tomou contato com a "Sinfonia nº 9" do amazonense Claudio Santoro (1919-1989), escrita em 1982 e estreada no ano seguinte pela própria OSB sob a regência do compositor. Nela, Santoro atinge a plenitude de sua arte, sem amarras panfletárias, sem manifestos, sem ilusões. A sonoridade expressionista esconde um Brasil longínquo, difuso, nada óbvio.
Dois momentos são exemplos da exuberância técnica do autor: o fugato do primeiro movimento e o trecho central do "Allegro" final, quando ecoa -qual fantasma- o início da "Nona" de Beethoven. Talvez apenas Guarnieri e Villa-Lobos tenham, entre os brasileiros, obra sinfônica comparável à de Santoro.
Ainda na primeira parte a orquestra apresentou três interlúdios instrumentais extraídos de "Lady Macbeth de Mtsensk", ópera de Dmitri Shostakovich (1906-1975) estreada com sucesso em 1934, mas censurada depois na política do realismo socialista.
A segunda peça, associada à cena do assassinato do sogro da protagonista -que a surpreendera com o amante-, tem grande carga dramática e ousadia harmônica. A OSB é experiente e foi crescendo durante o concerto: no começo, madeiras um pouco tímidas e cordas nem sempre homogêneas, mas metais em plena forma. No "Scherzino" de Santoro, a percussão já estava perfeita e as peças de Shostakovich mostraram virtuosismo no elo entre os naipes.
Por fim, em Beethoven, com o piano de Nelson Freire, tudo virou um instrumento só, capaz de esculpir cada onda sonora com a matéria fina da vida.


NELSON FREIRE E OSB

AVALIAÇÃO ótimo



JOÃO PEREIRA COUTINHO
O colunista está em férias.



AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Marcelo Coelho




Texto Anterior: João Emanuel Carneiro inventa protagonista dúbio em "A Cura"
Próximo Texto: Conselho da Cultura dá carta branca a Sayad
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.