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ERUDITO/CRÍTICA
A música encarnada num menino
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
No final do segundo movimento da "Sonata nš 2" de
Schumann (1810-56), um conhecido violista explodiu baixinho
para sua companheira, conhecida
violinista: "Uau". Era o comentário que estava na garganta de todo
mundo, vendo Ilya Gringolts tocar, anteontem no BankBoston. E
resumia, em três vogais, um espanto e uma alegria que resistem
à teorização mas também não podem não se fazer ouvir.
O jovem russo (21 anos) veio
precedido de tantos elogios que,
se não fossem suas gravações de
Bach (peças para violino solo) e
Prokofiev (o "Concerto nš 2" para
violino e orquestra), a gente até ficaria com um pé atrás. Mas são
gravações espantosas, de um músico que soa mais na faixa de idade de Jascha Heifetz (no reino dos
céus) ou de Itzhak Perlman (na
Juilliard School) do que na de Robinho e Diego. Com tal incentivo,
até a viagem aos confins da Berrini, enfrentando a zona de guerra
da Rebouças, parecia justificada.
Quinze minutos no jardim de
árvores brasileiras, conversando
com a água, fazem aquela diferença; depois disso, a primeira nota
da "Sonata K. 304" de Mozart
(1756-91) já era uma lição de outro mundo. Acompanhado pelo
bom pianista israelense-parisiense Itamar Golan -acompanhante de Barbara Hendricks e Maxim
Vengerov, entre outros- , e embrulhado num fraque de forro
vermelho, Gringolts tocou tudo
com uma seriedade impressionante, onde "seriedade" é a palavra que ocorre para uma mistura
inabalável de concentração e paixão.
Gringolts não ri, não sorri, não
fala, não é simpático nem antipático. É como se fosse a própria
música, encarnada por acaso na
figura do astigmático menino,
que não faz nada por acaso. Cada
vírgula da "Sonata nš 2" de Bartók
(1881-1945), por exemplo, tinha
seu ataque e sua entoação cuidadosamente justa; cada ponto-e-vírgula e cada dois pontos também.
O fato de ele tocar uma peça como essa já depõe a seu favor. Não
pela dificuldade, mas pela natureza de uma composição tão arrojada e ao mesmo tempo tão reservada nas suas seduções. São proezas
do gesto musical livre, ambientadas numa arquitetura modernista
que chega ao limite do atonal e dá
espaço para a experimentação sonora. O difícil mesmo é fazer a
música preservar sua coerência,
sem se dispersar em momentos. E
o mais impressionante foi ver
Gringolts e Golan se jogarem de
cabeça em cada instante, sem perder a cabeça.
Mesmo a cabeça irremediável e
maravilhosamente perdida de
Schumann (1810-56), nas "Peças
Fantásticas" e na "Sonata nš 2",
veio se traduzir, na segunda parte
do concerto, em iluminações de
uma super-razão musical. Um
dos traços mais característicos de
Gringolts é o domínio da dinâmica: notas poderosas que logo se
transformam, ou se deixam suplantar por outras no limite da
delicadeza. Mas ele também deixa
a gente de queixo caído quando
embarca num moto-perpétuo,
sem perder por nem um segundo
o fôlego olímpico.
O resumo fica por conta da conhecida violinista, no fim: "Meu!
Maravilhoso!" Se o conhecido casal ficou assim, que dirá de nós,
com as faíscas da música queimando até tarde da noite, no longo e tortuoso caminho de volta.
Ilya Gringolts
Onde: Sala Cecília Meireles (Largo da
Lapa, 47, RJ, tel. 0/xx/21/2224-4291) e
no Espaço Cultural BankBoston (av. Dr
Chucri Zaidan, 246, SP, tel. 0/xx/11/
3081-1911)
Quando: hoje às 20h30, no RJ, e 13/9 às
21h em SP
Quanto: R$40 e R$ 26 (clientes do
BankBoston).
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