São Paulo, sexta-feira, 10 de setembro de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

A música encarnada num menino

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

No final do segundo movimento da "Sonata nš 2" de Schumann (1810-56), um conhecido violista explodiu baixinho para sua companheira, conhecida violinista: "Uau". Era o comentário que estava na garganta de todo mundo, vendo Ilya Gringolts tocar, anteontem no BankBoston. E resumia, em três vogais, um espanto e uma alegria que resistem à teorização mas também não podem não se fazer ouvir.
O jovem russo (21 anos) veio precedido de tantos elogios que, se não fossem suas gravações de Bach (peças para violino solo) e Prokofiev (o "Concerto nš 2" para violino e orquestra), a gente até ficaria com um pé atrás. Mas são gravações espantosas, de um músico que soa mais na faixa de idade de Jascha Heifetz (no reino dos céus) ou de Itzhak Perlman (na Juilliard School) do que na de Robinho e Diego. Com tal incentivo, até a viagem aos confins da Berrini, enfrentando a zona de guerra da Rebouças, parecia justificada.
Quinze minutos no jardim de árvores brasileiras, conversando com a água, fazem aquela diferença; depois disso, a primeira nota da "Sonata K. 304" de Mozart (1756-91) já era uma lição de outro mundo. Acompanhado pelo bom pianista israelense-parisiense Itamar Golan -acompanhante de Barbara Hendricks e Maxim Vengerov, entre outros- , e embrulhado num fraque de forro vermelho, Gringolts tocou tudo com uma seriedade impressionante, onde "seriedade" é a palavra que ocorre para uma mistura inabalável de concentração e paixão.
Gringolts não ri, não sorri, não fala, não é simpático nem antipático. É como se fosse a própria música, encarnada por acaso na figura do astigmático menino, que não faz nada por acaso. Cada vírgula da "Sonata nš 2" de Bartók (1881-1945), por exemplo, tinha seu ataque e sua entoação cuidadosamente justa; cada ponto-e-vírgula e cada dois pontos também.
O fato de ele tocar uma peça como essa já depõe a seu favor. Não pela dificuldade, mas pela natureza de uma composição tão arrojada e ao mesmo tempo tão reservada nas suas seduções. São proezas do gesto musical livre, ambientadas numa arquitetura modernista que chega ao limite do atonal e dá espaço para a experimentação sonora. O difícil mesmo é fazer a música preservar sua coerência, sem se dispersar em momentos. E o mais impressionante foi ver Gringolts e Golan se jogarem de cabeça em cada instante, sem perder a cabeça.
Mesmo a cabeça irremediável e maravilhosamente perdida de Schumann (1810-56), nas "Peças Fantásticas" e na "Sonata nš 2", veio se traduzir, na segunda parte do concerto, em iluminações de uma super-razão musical. Um dos traços mais característicos de Gringolts é o domínio da dinâmica: notas poderosas que logo se transformam, ou se deixam suplantar por outras no limite da delicadeza. Mas ele também deixa a gente de queixo caído quando embarca num moto-perpétuo, sem perder por nem um segundo o fôlego olímpico.
O resumo fica por conta da conhecida violinista, no fim: "Meu! Maravilhoso!" Se o conhecido casal ficou assim, que dirá de nós, com as faíscas da música queimando até tarde da noite, no longo e tortuoso caminho de volta.


Ilya Gringolts
    
Onde: Sala Cecília Meireles (Largo da Lapa, 47, RJ, tel. 0/xx/21/2224-4291) e no Espaço Cultural BankBoston (av. Dr Chucri Zaidan, 246, SP, tel. 0/xx/11/ 3081-1911)
Quando: hoje às 20h30, no RJ, e 13/9 às 21h em SP
Quanto: R$40 e R$ 26 (clientes do BankBoston).



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