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RODAPÉ
Mitologias nipônicas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
É impossível ler "Cenas Japonesas", de Ronald Polito,
sem lembrar de "O Império dos
Signos", de Roland Barthes. Pois,
em ambos, a experiência da viagem, que normalmente convida
ao relato na forma de diário ou livro-reportagem, engendra seu
avesso: uma sucessão de notas
que brotam da impossibilidade
de penetrar totalmente no coração do outro. Logo no início do livro de 1970, Barthes diz que seu
procedimento consiste em "levantar em alguma parte do mundo ("lá') um certo número de traços (...) e desses traços formar deliberadamente um sistema. Chamarei esse sistema de: o Japão".
Na apresentação de suas "Crônicas de um Brasileiro em Tóquio" (subtítulo do livro), Polito
escreve: ""Cenas Japonesas" parece parafrasear as "Crônicas Marcianas" (de Ray Bradbury). Porque, para um brasileiro, o Japão é
outro planeta e vice-versa. Talvez
estes meus textos também possam ser lidos como o registro de
uma incompreensão, meu esforço para não me curvar fácil ao entendimento ou encantamento".
Estamos lidando, é claro, com
dois livros de resultados diferentes. "O Império dos Signos" é a
realização mais bem acabada daqueles "romances sem história"
almejados pela "écriture" barthesiana. "Cenas Japonesas" não traz
um projeto dessa ordem, mesmo
se seu autor é um poeta e ensaísta
de primeira linha; trata-se, mais
modestamente, de um conjunto
de crônicas de alguém que entre
2001 e 2004 foi professor de uma
universidade nipônica e morou
na periferia de Tóquio.
Mas, por esse viés, reencontramos Barthes. Só que agora é o autor de "Mitologias" que vem à
lembrança, pois o modo como
Polito vai desentranhando sentido das miudezas do país (já que
sua totalidade lhe é opaca) tem
muito daquela atitude do semiólogo francês de ir dissolvendo os
lugares-comuns guardados na
linguagem do dia-a-dia.
Uma viagem de trem em que
observa zumbis imersos em aparelhos eletrônicos ou literalmente
dormindo em pé nos vagões; a
pudicícia que faz com que todo
material pornográfico seja censurado por tarjas (e o preconceito
que faz com que estrangeiros não
sejam admitidos nos mesmos
bordéis que os japoneses); um
aluno que, em respeito às tradições de seu clã, abandona a pós-graduação para cuidar do cemitério familiar.
É dessas situações que ele extrai
estranhamento, graças a uma escrita sem empatia, que não hesita
em falar (com humor mal-humorado) do aroma "nauseabundo"
de comida que caracteriza a cidade ou da prepotência que se esconde sob a humildade e a subserviência nipônicas.
Esta é uma das marcas do livro:
em nenhum momento Polito cede ao fascínio pela diferença cultural, que muitas vezes não passa
de rótulo "diet" na uniformização
planetária. Ao contrário, ele enxerga no Japão a concretização de
dois traços complementares da
sociedade pós-moderna: a onipresença da tecnologia e a infantilização.
Contra o estereótipo de uma
cultura discreta e compenetrada,
Polito descreve a parafernália que
introduz em cada ambiente público (estação de trem, loja, elevador) uma voz saindo de um alto-falante:
"Não só os japoneses falam,
pois para multiplicar essa tendência atávica eles decidiram também dar voz aos objetos e às instalações. (...) Para isso, elegeram
uma configuração heterodoxa e
admirável de coisas portadoras de
linguagem articulada, digamos,
hodiernos Odradeks com voz
própria e que, como deve ser, para nossa indignação, também sobreviverão a nós".
Ao mesmo tempo, esse universo inanimado se renova na lógica
vertiginosa do capitalismo: os
produtos (que podem ser calendários e camisetas de uma exposição de Miró ou bichinhos de pelúcia consumidos por executivos
imbecilizados) se reproduzem e
multiplicam sua perecibilidade,
levando os japoneses a comprar
"num frenesi indisfarçável, salivando, possuindo essa miríade de
teratologias, de sucatas intactas,
novinhas em folha. Eis aí -conclui Polito na esteira de Walter
Benjamin- a subversão total e
creio que irreversível do conceito
de ruína".
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Cenas Japonesas
Autor: Ronald Polito
Editora: Globo
Quanto: R$ 29 (176 págs.)
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