São Paulo, sábado, 10 de setembro de 2005

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RODAPÉ

Mitologias nipônicas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

É impossível ler "Cenas Japonesas", de Ronald Polito, sem lembrar de "O Império dos Signos", de Roland Barthes. Pois, em ambos, a experiência da viagem, que normalmente convida ao relato na forma de diário ou livro-reportagem, engendra seu avesso: uma sucessão de notas que brotam da impossibilidade de penetrar totalmente no coração do outro. Logo no início do livro de 1970, Barthes diz que seu procedimento consiste em "levantar em alguma parte do mundo ("lá') um certo número de traços (...) e desses traços formar deliberadamente um sistema. Chamarei esse sistema de: o Japão".
Na apresentação de suas "Crônicas de um Brasileiro em Tóquio" (subtítulo do livro), Polito escreve: ""Cenas Japonesas" parece parafrasear as "Crônicas Marcianas" (de Ray Bradbury). Porque, para um brasileiro, o Japão é outro planeta e vice-versa. Talvez estes meus textos também possam ser lidos como o registro de uma incompreensão, meu esforço para não me curvar fácil ao entendimento ou encantamento".
Estamos lidando, é claro, com dois livros de resultados diferentes. "O Império dos Signos" é a realização mais bem acabada daqueles "romances sem história" almejados pela "écriture" barthesiana. "Cenas Japonesas" não traz um projeto dessa ordem, mesmo se seu autor é um poeta e ensaísta de primeira linha; trata-se, mais modestamente, de um conjunto de crônicas de alguém que entre 2001 e 2004 foi professor de uma universidade nipônica e morou na periferia de Tóquio.
Mas, por esse viés, reencontramos Barthes. Só que agora é o autor de "Mitologias" que vem à lembrança, pois o modo como Polito vai desentranhando sentido das miudezas do país (já que sua totalidade lhe é opaca) tem muito daquela atitude do semiólogo francês de ir dissolvendo os lugares-comuns guardados na linguagem do dia-a-dia.
Uma viagem de trem em que observa zumbis imersos em aparelhos eletrônicos ou literalmente dormindo em pé nos vagões; a pudicícia que faz com que todo material pornográfico seja censurado por tarjas (e o preconceito que faz com que estrangeiros não sejam admitidos nos mesmos bordéis que os japoneses); um aluno que, em respeito às tradições de seu clã, abandona a pós-graduação para cuidar do cemitério familiar.
É dessas situações que ele extrai estranhamento, graças a uma escrita sem empatia, que não hesita em falar (com humor mal-humorado) do aroma "nauseabundo" de comida que caracteriza a cidade ou da prepotência que se esconde sob a humildade e a subserviência nipônicas.
Esta é uma das marcas do livro: em nenhum momento Polito cede ao fascínio pela diferença cultural, que muitas vezes não passa de rótulo "diet" na uniformização planetária. Ao contrário, ele enxerga no Japão a concretização de dois traços complementares da sociedade pós-moderna: a onipresença da tecnologia e a infantilização.
Contra o estereótipo de uma cultura discreta e compenetrada, Polito descreve a parafernália que introduz em cada ambiente público (estação de trem, loja, elevador) uma voz saindo de um alto-falante:
"Não só os japoneses falam, pois para multiplicar essa tendência atávica eles decidiram também dar voz aos objetos e às instalações. (...) Para isso, elegeram uma configuração heterodoxa e admirável de coisas portadoras de linguagem articulada, digamos, hodiernos Odradeks com voz própria e que, como deve ser, para nossa indignação, também sobreviverão a nós".
Ao mesmo tempo, esse universo inanimado se renova na lógica vertiginosa do capitalismo: os produtos (que podem ser calendários e camisetas de uma exposição de Miró ou bichinhos de pelúcia consumidos por executivos imbecilizados) se reproduzem e multiplicam sua perecibilidade, levando os japoneses a comprar "num frenesi indisfarçável, salivando, possuindo essa miríade de teratologias, de sucatas intactas, novinhas em folha. Eis aí -conclui Polito na esteira de Walter Benjamin- a subversão total e creio que irreversível do conceito de ruína".

Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço


Cenas Japonesas
    
Autor:
Ronald Polito
Editora: Globo
Quanto: R$ 29 (176 págs.)


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