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ROMANCE
"Colina Negra", do escritor britânico, faz uma crônica da vida rural
Bruce Chatwin deixa aventura e faz elogio da imobilidade
MARCELO REZENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1989, quando a morte do
britânico Bruce Chatwin foi
anunciada -aos 47 anos, em
conseqüência da ação do vírus
HIV-, sua imagem de aventureiro, adorador do movimento, se
cristalizava na prosa inglesa.
Chatwin foi sobretudo um viajante, mas o romance "Colina Negra", lançado agora no Brasil, oferece a chance para um pequeno
revisionismo. O texto é um longo,
barroco e obsessivo elogio da
imobilidade das coisas.
O material escolhido por Chatwin para construir sua obra foi o
mito em torno de lugares e povos,
como "Patagônia" (1977, Companhia das Letras), sobre a região argentina, ou "O Rastro dos Cantos" (1987, Companhia das Letras), experiência existencial sobre os aborígenes da Austrália;
uma mitologia que se expande
para além de sua produção, chegando até sua biografia, repleta de
acontecimentos fantásticos raramente comprovados. Para ele, fato e criação eram gêmeos inseparáveis, e seu divertimento era iludir aqueles que o observavam.
Gêmeos são o tema e estão na
gênese de "Colina Negra". Após a
derrota crítica do livro "O Vice-Rei de Uidá" (1980, Companhia
das Letras), ele perseguia o reconhecimento do establishment inglês e assim planejou uma história
com essa função. Toda a encantadora mistura de verdade e construção que tinha projetado seu
nome deveria ser posta de lado. O
resultado foi o encontro com o
passado, com a literatura pastoral
britânica e, claro, com dois irmãos inseparáveis.
Bruce Chatwin (1940-1989) passou a infância na região de fronteira entre a Inglaterra e o País de
Gales. Quando em crise, era para
lá que rumava, dando as costas
para a ambição de nômade. Em
uma dessas visitas, conhece dois
irmãos de cerca de 60 anos, solteiros e -segundo rumores locais- possivelmente virgens. Para ele, o encontro foi mais do que
uma nova amizade. Foi toda uma
chance.
"Colina Negra" é a crônica da
vida rural e seu combate contra as
transformações do século 20, ilustrada na trajetória de gêmeos solitários, nascidos em 1900, que jamais deixaram o território onde
viveram. O fato de ouvirem ecos
de uma revolução comunista na
Europa, de duas guerras mundiais, da corrida espacial ou da
chegada das máquinas no campo,
pouco importa. A atenção dos
dois está voltada para a família, os
amores não realizados, os vizinhos e o ciclo da terra e dos animais, tudo contado por meio de
um estilo assumidamente "fora
do tempo".
Chatwin escreve como se nada
tivesse acontecido na literatura
ocidental desde o final dos anos
1800, e suas descrições de objetos
e plantas traem um enciclopedismo doentio. Muitas vezes, "Colina Negra" é menos uma obra em
diálogo com o passado e mais o
pastiche de uma forma abandonada de ficção.
Um romance menor? Talvez,
mas isso seria reduzir um peculiar
autor. Seus gêmeos são figuras
trágicas que mantêm um incestuoso relacionamento, e esse homoerotismo é lançado ao leitor
em meio a banais e repetitivas frases. Chatwin mirava a inocência e
o prazer do conformismo, mas
deixou a visão de um mundo no
qual a mais rigorosa ordem pode
ser também uma forma de perversão.
Marcelo Rezende é jornalista, autor de
"Ciência do Sonho - A Imaginação Sem
Fim do Diretor Michel Gondry" (Alameda/Situações) e "Arno Schmidt" (Planeta)
Colina Negra
Autor: Bruce Chatwin
Tradução: Luciano Machado
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47,50 (344 págs.)
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