São Paulo, sábado, 10 de setembro de 2005

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ROMANCE

"Colina Negra", do escritor britânico, faz uma crônica da vida rural

Bruce Chatwin deixa aventura e faz elogio da imobilidade

MARCELO REZENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1989, quando a morte do britânico Bruce Chatwin foi anunciada -aos 47 anos, em conseqüência da ação do vírus HIV-, sua imagem de aventureiro, adorador do movimento, se cristalizava na prosa inglesa. Chatwin foi sobretudo um viajante, mas o romance "Colina Negra", lançado agora no Brasil, oferece a chance para um pequeno revisionismo. O texto é um longo, barroco e obsessivo elogio da imobilidade das coisas.
O material escolhido por Chatwin para construir sua obra foi o mito em torno de lugares e povos, como "Patagônia" (1977, Companhia das Letras), sobre a região argentina, ou "O Rastro dos Cantos" (1987, Companhia das Letras), experiência existencial sobre os aborígenes da Austrália; uma mitologia que se expande para além de sua produção, chegando até sua biografia, repleta de acontecimentos fantásticos raramente comprovados. Para ele, fato e criação eram gêmeos inseparáveis, e seu divertimento era iludir aqueles que o observavam.
Gêmeos são o tema e estão na gênese de "Colina Negra". Após a derrota crítica do livro "O Vice-Rei de Uidá" (1980, Companhia das Letras), ele perseguia o reconhecimento do establishment inglês e assim planejou uma história com essa função. Toda a encantadora mistura de verdade e construção que tinha projetado seu nome deveria ser posta de lado. O resultado foi o encontro com o passado, com a literatura pastoral britânica e, claro, com dois irmãos inseparáveis.
Bruce Chatwin (1940-1989) passou a infância na região de fronteira entre a Inglaterra e o País de Gales. Quando em crise, era para lá que rumava, dando as costas para a ambição de nômade. Em uma dessas visitas, conhece dois irmãos de cerca de 60 anos, solteiros e -segundo rumores locais- possivelmente virgens. Para ele, o encontro foi mais do que uma nova amizade. Foi toda uma chance.
"Colina Negra" é a crônica da vida rural e seu combate contra as transformações do século 20, ilustrada na trajetória de gêmeos solitários, nascidos em 1900, que jamais deixaram o território onde viveram. O fato de ouvirem ecos de uma revolução comunista na Europa, de duas guerras mundiais, da corrida espacial ou da chegada das máquinas no campo, pouco importa. A atenção dos dois está voltada para a família, os amores não realizados, os vizinhos e o ciclo da terra e dos animais, tudo contado por meio de um estilo assumidamente "fora do tempo".
Chatwin escreve como se nada tivesse acontecido na literatura ocidental desde o final dos anos 1800, e suas descrições de objetos e plantas traem um enciclopedismo doentio. Muitas vezes, "Colina Negra" é menos uma obra em diálogo com o passado e mais o pastiche de uma forma abandonada de ficção.
Um romance menor? Talvez, mas isso seria reduzir um peculiar autor. Seus gêmeos são figuras trágicas que mantêm um incestuoso relacionamento, e esse homoerotismo é lançado ao leitor em meio a banais e repetitivas frases. Chatwin mirava a inocência e o prazer do conformismo, mas deixou a visão de um mundo no qual a mais rigorosa ordem pode ser também uma forma de perversão.

Marcelo Rezende é jornalista, autor de "Ciência do Sonho - A Imaginação Sem Fim do Diretor Michel Gondry" (Alameda/Situações) e "Arno Schmidt" (Planeta)


Colina Negra
  
Autor:
Bruce Chatwin
Tradução: Luciano Machado
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47,50 (344 págs.)


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