São Paulo, Sexta-feira, 10 de Setembro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
A rara solidariedade no mundo das letras

Não é para fazer comparação, mas é bom recordar que nem sempre o homem, funcionando como o vilão da história, merece repúdio total. Pinço de nossa vida literária um episódio que quase ninguém conhece, envolvendo dois monstros sagrados da bela época de nossas letras.
São personagens: Olavo Bilac, carioca, príncipe dos poetas, e Coelho Neto, maranhense, que encheu um tempo em nossa literatura até ser eleito alvo preferencial dos ataques daqueles que genericamente se intitulavam ""modernistas".
Bilac combatia a ditadura de Floriano Peixoto, foi preso e confinado, mesmo assim continuou a luta contra o ditador. Precisou fugir certa vez, estava de caixa baixa, empenhou as jóias da mãe. Quando as coisas melhoraram, voltou ao Rio e soube que as jóias iriam a leilão. Acabrunhado, procurou Coelho Neto, amigo do livreiro Francisco Alves -o mesmo que deixaria sua fortuna para a Academia Brasileira de Letras.
Foram os dois, poeta e romancista, ao livreiro Alves, na esperança de um adiantamento por conta dos direitos autorais de algum livro que ainda poderia ser escrito. Era uma segunda-feira. O leilão das jóias seria na sexta. Alves perguntou se eles tinham algum original pronto. Não tinham. Fugindo da polícia de Floriano, o poeta guardara alguns sonetos esparsos, não davam para formar um volume. Coelho Neto naquele momento nada tinha na gaveta.
Alves perguntou se os dois não podiam fazer contos destinados aos alunos dos ginásios, aquela massa de leitores que hoje chamamos de público infanto-juvenil. Adotados nos colégios, os textos precisariam contar episódios da história do Brasil, temas cívicos, essas coisas. Sugeriu o título: ""Contos Pátrios". Preço da encomenda: quatro contos de réis. Pagaria metade na hora, metade contra a entrega dos originais, no final da semana.
Bilac e Neto se olharam. Teriam três dias para salvar as jóias do leilão. Toparam. Foram para casa, passaram os três dias escrevendo contos, um após outro. Varavam as noites na tarefa. Na sexta-feira, Alves recebeu os originais.
O maior prosador da época e o maior poeta de todo um tempo nacional assinariam em conjunto um livro escolar que venderia 105 mil exemplares -segundo informação de Felix Pacheco a Humberto de Campos. Seria um dos maiores best-sellers de nossa indústria editorial, um fenômeno se levarmos em conta que a população brasileira era de 20% em relação a de hoje.
Não conheço esse livro, só de referências. É possível que tenha lido algum desses contos em antologias ou publicações esparsas. Não devem ser obras-primas. Mas a atitude de Coelho Neto é uma obra-prima de solidariedade humana e profissional. Ele até que vivia bem, na casa que era um ponto de encontro dos intelectuais da época, ali em frente ao campo do Fluminense, na rua que hoje tem o seu nome.
Curiosamente, o romancista era franzino, doentio, míope. Mas cultuava o ideal olímpico dos gregos -e por isso foi ridicularizado. Tornou-se o primeiro divulgador do futebol e o maior incentivador da vida esportiva de seu tempo. Até então, o esporte mais popular do Rio era o remo. Foi Coelho Neto quem popularizou, na imprensa, na sociedade e no povo em geral, aquilo que ainda chamavam de ""soccer".
Torcia fanaticamente pelo Fluminense, clube em que seus filhos jogavam, dois deles chegaram à seleção nacional. Vi jogar um deles, Preguinho, que era médico. Um craque veloz, sanguíneo, dominava a bola na corrida, e embora atuasse no centro do ataque, lembraria o grande Julinho Botelho, o maior dos nossos pontas -excluindo-se Garrincha, que era outra coisa.
Bilac era o intelectual mais famoso do tempo. Seu perfil parnasiano tornou-se logotipo de uma época. Está em processo de reabilitação como poeta e até mesmo como prosador -recentemente a Companhia das Letras lançou um livro de crônicas que espantou leitores e críticos de hoje. Ano passado, em Paris, estava em companhia de Lygia Fagundes Telles, passávamos em revista nossas preferências, de repente, Lygia abriu a bolsa e dela tirou um soneto de Bilac que anda sempre com ela. Mais tarde me mandou a cópia, que agora anda comigo.
Para ser completo, lembro solidariedade igual em nosso mundo literário: a de José Lins do Rego, que abrigou Graciliano Ramos, mulher e filhos em sua casa, tão logo o romancista de ""Vidas Secas" saiu da prisão devido ao empenho do autor de ""Menino do Engenho".
No caso de Bilac, o gesto de Coelho Neto envolveu bem mais do que o lado material da solidariedade. Ele não precisava escrever aqueles contos encomendados, tinha público certo e prestígio crítico firmado e confirmado. Ao ser agredido fisicamente pelos modernistas, na famosa sessão da Academia, ele ficou pulando no plenário, declarando-se o último helênico. Ridículo -mas comovente em sua grandeza humana.


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