São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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TELEVISÃO

"Straight Plan for the Gay Man" adere à onda transformista, camuflando homossexualidade de participantes

Personalidades criticam a "trans-TV"

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Dentro da atual voga transformista da TV, a próxima modinha é colocar gays afetados sendo "ensinados" a se passar por heterossexuais machões. Chamado "Straight Plan for the Gay Man", o programa estréia no Brasil no canal pago GNT, no próximo dia 26. Seu propósito é inverter, na mesma base de brincadeira, os princípios do projeto "Queer Eye for the Straight Guy", exibido no Sony.
No programa original, uma equipe de homossexuais estilosos se empenha a ensinar sofisticação e boas maneiras a típicos grosseirões heterossexuais. No novo, quatro "machões" fazem de tudo para camuflar temporariamente trejeitos e gestos estereotipados de voluntários gays.
Em três episódios, "ensinam" três cobaias a dissimular suas sexualidades -o primeiro tem de passar uma tarde trabalhando num frigorífico, o segundo participa de um jogo de basquete, o terceiro precisa conquistar uma garota numa agência de namoros.
Alguns dos "professores" heterossexuais participam da farsa e, ao final, pessoas com quem eles conviveram são instadas a adivinhar qual deles era o homossexual disfarçado. Invariavelmente, são os héteros que acabam apontados como supostos gays.
Além de os participantes todos terem postura de atores, os episódios parecem roteirizados, ficando num limite nebuloso entre o "show de realidade", o programa humorístico e a mera ficção.
Ao final, o tom de brincadeira amena é sublinhado pelos voluntários -os três afirmam, sorridentes, que não pretendem abrir mão da identidade gay.
No Brasil, tais programas provocam desconfiança entre personalidades ouvidas pela Folha -não só ativistas do movimento homossexual, como também figuras televisivas que convivem com o atual ambiente de "reality shows" que promovem supostas transformações de pobres em ricos, anônimos em famosos, feios em bonitos etc.
Cantora, compositora, escritora e militante homossexual, Vange Leonel aponta diferença inicial entre as brincadeiras aparentemente semelhantes dos dois programas: "O "Straight Plan" me parece mais pernicioso, porque toca num ponto muito delicado para nós, gays e lésbicas: o fantasma da conversão, do disfarce. Por mais bem-humorado que seja o programa, a piada é indigesta", diz.
"Já o "Queer Eye" adestra o voluntário, no máximo, para parecer um metrossexual, e o aspecto negativo aí é se curvar diante de modinhas padronizadoras", completa, classificando como mais nociva a outra premissa, "de que você pode se converter (ou se curar) e para isso basta querer".
A opinião contrária é compartilhada pelo roqueiro Supla, heterossexual convicto que esteve na origem da chegada da onda ao Brasil, quando a primeira "Casa dos Artistas" fez sua conversão temporária de punk rebelde em galã romântico do SBT.
"Não acho saudável. Acho que você tem que ser o que é, não querer ser outra pessoa. Aconteci na "Casa dos Artistas" porque fui simplesmente o que eu era", diz.
"O único lado ruim da experiência é quando punks radicais chegam falando "pô, tá vendendo boneco?'", diz, contando ter vendido quase 150 mil bonecos Supla, projetados por ele mesmo.
Experiência ambivalente é a de Laura Finocchiaro, cantora, compositora e militante homossexual que faz direção musical e enxerta artistas independentes na "Casa dos Artistas". "Acho esses programas, bem como os "reality shows" de que participo, nocivos à saúde e à cultura do telespectador. Assuntos que merecem dignidade e seriedade são tratados com ironia, sensacionalismo e superficialidade, gerando mais preconceitos e desinformação."
Laura se diz descrente da utilidade de tais programas para permitir maior visibilidade e aceitação da população homossexual.
"O que os move é a consciência de que existe um "pink money'", diz, fazendo alusão ao lucro obtido pelo consumismo de homossexuais de classes mais altas. "Mas esse gênero só afasta o público da informação, do respeito por quem está à margem do que é considerado normal pela sociedade careta."
Embora não seja fruto dos "reality shows", a cantora, atriz e apresentadora Preta Gil tem transitado pelo ambiente da "trans-TV", especialmente por sua luta pública constante para emagrecer.
Preta, que afirma que namorou mulheres e hoje diz que só o fazia por "modismo" e para "atiçar os homens", ressalta saber que está inserida no sistema -mas o critica, mesmo assim. "Na TV as pessoas precisam se mascarar e se travestir cada vez mais para aparecer, para criar ganchos televisivos que dêem audiência."
Falando à Folha por telefone enquanto faz drenagem linfática na clínica Santé, comenta o transformismo estético vigente na TV e na "vida real". "Eu me fodi, saí de uma lipoaspiração direto para a depressão. É uma violência, um efeito Michael Jackson. Falam tanto dele, mas está todo mundo se transformando em mini-Michael Jackson, se mutilando, se branqueando. Para quem tem recursos, é mais fácil procurar um cirurgião que um psicólogo, um guia espiritual ou sua mãe."
De volta à questão sexual, opina: "Esses programas separatistas só reafirmam guetos e preconceitos. A humanidade é bissexual, o melhor seria misturar gay, hétero, bi, sem apontar ninguém".
Não muito distantes dessas posições estão as do cineasta, escritor e pioneiro do ativismo gay brasileiro João Silvério Trevisan: "Confundir virilidade com machismo é lamentável, burro. Homossexuais não estão geneticamente programados para ter gosto mais apurado e ser gentis, assim como heterossexuais não estão geneticamente programados para serem cafonas e grosseiros".
"Para fazer "reality show" de verdade sobre isso, é só abrir as câmeras que mostrem homens gays se fazendo passar por heterossexuais, aos milhares, em todos os lugares, em todos os ramos, 24 horas por dia", ironiza Trevisan.


STRAIGHT PLAN FOR THE GAY MAN - Estréia dia 26, às 19h30, no canal GNT; reprises dia 26, à 0h, dia 27, às 11h, e dia 31, às 12h.

QUEER EYE FOR THE STRAIGHT GUY - No canal Sony, domingos, às 21h, e segundas, às 2h; na Rede 21, domingos, 22h30.



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