São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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CINEMA

Para jornalista americano, filme é "piedoso" com o líder revolucionário
"Diários" realiza retrato antagônico de Che Guevara

Reprodução do livro "Cuba por Korda"
Che Guevara (centro) com a mãe Celia d la Serna y Llosa, em foto de "Cuba por Korda" (ed. Cosac & Naify)


PAUL BERMAN
DA "SLATE"

O culto a Ernesto Che Guevara é um episódio da indiferença moral de nossos tempos. Che foi um totalitário. Ele não realizou nada, a não ser o desastre. Muitos dos líderes da primeira fase da Revolução Cubana eram a favor de uma direção democrática ou democrático-socialista para a nova Cuba. Mas Che era defensor ferrenho da facção de linha-dura, pró-soviética, e sua facção venceu.
Che presidiu sobre os primeiros pelotões de fuzilamento da Revolução Cubana. Ele fundou o sistema dos chamados campos de trabalho de Cuba, que acabou sendo utilizado para encarcerar gays, dissidentes e vítimas da Aids. Ser morto e fazer com que muitas outras pessoas fossem mortas era algo de importância capital na imaginação de Che. No célebre ensaio no qual lançou seu chamado retumbante por "dois, três, muitos Vietnãs", também falou do martírio e compôs várias frases assustadoras: "O ódio como elemento da luta; ódio inabalável pelo inimigo, que impele o ser humano para além de suas limitações naturais, transformando-o numa máquina de matar, eficaz, violenta, seletiva e a sangue frio. É isso o que nossos soldados precisam se tornar...", e assim por diante.
Ele foi morto na Bolívia em 1967, liderando um movimento guerrilheiro que não conseguiu recrutar um único camponês boliviano. Apesar disso, conseguiu inspirar dezenas de milhares de latino-americanos de classe média, levando-os a deixar as universidades e organizar insurgências guerrilheiras próprias. E essas insurgências tampouco conseguiram qualquer coisa exceto provocar a morte de centenas de milhares de pessoas e criar reveses para a democracia latino-americana -uma tragédia na maior escala possível.

Inimigo da liberdade
O culto atual ao Che -as camisetas, os cartazes etc.- conseguiu obscurecer essa realidade terrível. Agora o filme "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, vai tomar seu lugar no cerne desse culto. O filme já foi ovacionado no festival de Sundance, de Robert Redford (que, por sinal, é o produtor executivo de "Diários de Motocicleta"), e foi recebido com admiração calorosa pela imprensa.
Che foi inimigo da liberdade, mas foi erguido em símbolo da liberdade. Ele ajudou a criar um sistema social injusto em Cuba, mas foi erguido em símbolo da justiça social. Ele representava a rigidez antiga do pensamento latino-americano em versão marxista-leninista e foi celebrado como livre-pensador e rebelde. E é isso o que é feito em "Diários de Motocicleta", do cineasta brasileiro Walter Salles.
O filme acompanha a trajetória do jovem Che e de seu amigo Alberto Granado numa viagem solta pela América Latina em 1951-52, viagem essa que o próprio Che descreveu num livro publicado sob o título de "Diários de Motocicleta", e Granado, em outro livro. Naquela época Che era estudante de medicina e Granado, bioquímico.
Na vida real, como no filme, os dois passaram semanas trabalhando como voluntários num leprosário no Peru. Aquelas semanas no leprosário constituem o cerne dramático do filme. A colônia era comandada tiranicamente por freiras que mantinham uma hierarquia cruel entre funcionários e pacientes. As freiras se recusam a alimentar pessoas que deixam de assistir à missa.
Em sua honestidade insistente, o jovem Che se revolta contra essas imposições, e sua rebelião é instigadora de ver. Você pensa que está assistindo a um protesto nobre contra os usos e costumes opressivos e autoritários de uma Igreja Católica obscurantista em sua versão mais reacionária.
No entanto, em seu conceito e em seu tom, o filme inteiro exala um culto cristológico ao martírio, um culto de adoração à pessoa espiritualmente superior que se desvia em direção à morte -ou seja, precisamente o tipo de adoração que a Igreja Católica latino-americana promoveu por séculos, com conseqüências infelizes.
A rebelião contra o catolicismo reacionário, no filme, é em si mesma uma expressão do catolicismo reacionário. As igrejas tradicionais da América Latina são repletas de estátuas de santos ensanguentados e assustadores.
E a atração masoquista exercida por essas estátuas é precisamente o que se vê nos muitos momentos em que o filme mostra o jovem Che pondo os pulmões para fora em acessos de asma e testando seus limites ao nadar na água fria -cenas essas que se tornam belas e sedutoras em razão de um pano de fundo sensual de tons de verde, cinza e marrom e em função dos belos rostos magros de um ator depois de outro, e das violentas paisagens andinas.
Em sua história, o filme se atém mais ou menos de perto aos diários de Che, com alguns poucos acréscimos de outras fontes. O diário em si tende a ser fortuito e não ideológico, excetuando alguns poucos trechos. Quando partiu nessa viagem, Che ainda não era ideólogo. Ele refletiu sobre a história multifacetada da América Latina e expressou atitudes que conseguiam ser a favor dos indígenas e, ao mesmo tempo, dos conquistadores.
Mas o filme é consideravelmente mais ideológico do que o diário, ansioso por expressar uma atitude "indigenista" (o termo é marxista latino-americano) de solidariedade para com os índios e hostilidade aos conquistadores. Alguns textos marxistas peruanos chegam a aparecer na tela. Posso imaginar que Salles e seu roteirista, José Rivera, tenham sido influenciados mais pelo subcomandante Marcos e sua rebelião "indigenista" em Chiapas, no México, do que por Che Guevara.
No entanto, apesar de todo o indigenismo ostensivo do filme, seus momentos de maior drama têm muito pouco a ver com o passado indígena ou com o próprio Novo Mundo.
O drama é espanhol, da forma mais arcaica, combinando o martírio católico das cenas que lembram Cristo com o espírito de pé na estrada, não de Jack Kerouac -como algumas pessoas poderiam imaginar-, mas de Dom Quixote e Sancho Pança, uma fórmula testada e comprovada na cultura hispânica (ver o clássico romance do século 19 "Nazarín", de Benito Pérez Galdós).
Se fôssemos comparar o "Diários de Motocicleta" de Salles, com seu tom piedoso, com os filmes irreverentes, bem-humorados, irônicos e libertários de Pedro Almodóvar, poderíamos facilmente imaginar que o filme de Salles data de um passado longínquo, possivelmente dos tempos reacionários e sombrios de Franco. E sabemos que os filmes de Almodóvar são frutos da era moderna que se revoltou contra Franco.
O culto contemporâneo ao Che nos torna cegos não apenas para o passado mas também para o presente. Neste exato momento uma luta social tremenda está tendo lugar em Cuba. Os liberais dissidentes reivindicam direitos humanos fundamentais, e a ditadura prendeu todos menos um ou dois dos líderes dissidentes e os condenou a muitos anos de prisão.
Entre esses líderes encarcerados, está um importante poeta e jornalista cubano, Raúl Rivero, que está cumprindo pena de 20 anos de prisão. Nos últimos dois anos, o movimento dissidente surgiu sob mais uma forma em Cuba, como campanha para a criação de bibliotecas independentes, livres do controle do Estado -e a repressão do Estado caiu também sobre essa campanha.

Solidariedade
Esses acontecimentos cubanos vêm chamando a atenção de uma série de intelectuais e liberais em todo o mundo. Václav Havel organizou uma campanha de solidariedade com os dissidentes cubanos e, ao lado de Elena Bonner e outros liberais heróicos do antigo bloco soviético, correu para apoiar os bibliotecários cubanos.
Um grupo de bibliotecários americanos manifestou sua solidariedade para com seus colegas cubanos, mas, para poder fazê-lo, os bibliotecários americanos foram obrigados a lutar dentro de sua própria organização de bibliotecários, dentro da qual a ditadura de Fidel Castro ainda conta com muitos simpatizantes.
No entanto, nada disso vem ganhando muito destaque nos EUA, com a exceção de uma ou outra coluna de jornal assinada por Nat Hentoff e possivelmente alguns outros jornalistas, além de uma ocasional carta ao editor. As declarações e os manifestos assinados por Havel foram publicados no jornal "Le Monde", de Paris, e na revista mexicana "Letras Libres", mas permanecem praticamente invisíveis nos EUA.
A época em que os intelectuais americanos se uniam de maneira significativa para defender a causa de dissidentes liberais em outros países, a época em que as declarações de Václav Havel eram vistas por americanos como chamados importantes pela responsabilidade social, essa época parece ter chegado ao fim.
Eu me pergunto se as pessoas que se levantam para saudar uma hagiografia de Che Guevara, como fez o público em Sundance, alguma vez vão dar a mínima para o povo oprimido de Cuba -se alguma vez elas vão levantar um dedo sequer em prol dos liberais e dissidentes cubanos. No mundo do cinema, é fácil fazer um filme sobre Che, mas quem, no meio daquele público que aplaude, vai se dispor a fazer um filme sobre Raúl Rivero?



Tradução de Clara Allain


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