São Paulo, segunda-feira, 10 de outubro de 2005

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NELSON ASCHER

O referendo

O referendo sobre a comercialização de armas de fogo e munição no Brasil é, de um ponto de vista prático, uma bobagem: uma perda de tempo e dinheiro, um desperdício de saliva e tinta.
Caso as previsões se confirmem e se limite ainda mais o acesso legal dos cidadãos a revólveres, pistolas etc., a melhor conseqüência que advirá disso, se formos otimistas, será uma redução marginal no número de acidentes letais e, com muita sorte, uma baixa mínima no índice de alguns poucos tipos de homicídio.
As preocupações que, no fundo, movem a maioria das eleitores bem-intencionados, a saber, a criminalidade, a sensação realista ou exagerada de insegurança sobretudo nas grandes metrópoles, essas mal serão afetadas pelo voto, pois, como diria o poeta T.S. Eliot, entre a criação de uma lei e sua implementação, cai a sombra. Não faltam em parte alguma leis maravilhosas que, por mais esperançosamente tenham vindo à luz, nunca passaram de letra morta.
Com um litoral do tamanho do nosso, com a extensão das fronteiras nacionais, para nem falar das nações que estão do outro lado delas, nem o mais totalitário governo de esquerda ou direita nem a força policial mais numerosa, honesta e eficiente do mundo conseguiriam manter sob controle o influxo de armas ilegais provenientes do exterior.
Trocando em miúdos, se ninguém é capaz de impedir, por exemplo, a entrada de drogas ou de imigrantes sem papéis inclusive em terras decentemente administradas, os criminosos autênticos darão, quando preciso, um "jeitinho" de, desde um trivial "três-oitão", passando pela Kalashnikov padrão até um lança-mísseis de última geração, obter tudo o que considerem instrumento imprescindível de trabalho.
Nada de novo até aqui. Mas, então, qual a função desse referendo, o que é que está, de fato, sendo discutido?
O direito individual de possuir e portar armas de fogo é, como o aborto ou a pena capital, uma dessas questões espinhosas que envolvem muito mais do que o observador ingênuo ou desinformado supõe, questões que definem o caráter de uma sociedade.
Há duas maneiras fundamentais, não mutuamente exclusivas, de pensar as leis: de acordo com os princípios (éticos, morais, políticos) que levaram à sua promulgação, ou segundo os resultados que se espera que produzam.
Alguém pode ser contra o aborto mesmo sabendo da infelicidade que um rebento indesejado tende a gerar, ou ser a favor dele embora não ignore que, a longo prazo, sua generalização contribui em diversos países para a importação de uma mão-de-obra cuja proliferação potencialmente acirra conflitos etno-religiosos. De forma semelhante, outros apoiariam ou não a execução de criminosos independentemente de seus efeitos positivos ou negativos sobre os níveis de criminalidade. Trata-se, nesses casos diversos, de opções que, malgrado amiúde serem defendidas com dados e estatísticas que apontam para tais ou quais conseqüências, enraízam-se em princípios que as antecedem nem seriam abandonados perante evidências objetivas que os contradissessem.
Existe, assim, gente que julga qualquer violência, seja no atacado, seja no varejo, ilegítima. Para um pacifista radical, até um ato indiscutível de autodefesa constitui uma abominação, quando não significa pura e simplesmente que a vítima, ao reagir, se confunde com o agressor. Tal alergia à violência, encarnada na recusa a distinguir entre a legítima e a ilegítima, tornou-se, nos dias atuais, uma espécie de religião laica que, nas elites bem-pensantes, atrai legiões crescentes de seguidores. Doutrinários que são, eles também entendem que suas doutrinas, se aberta e claramente formuladas, jamais convenceriam o grosso de tanto faz qual população.
Muitas mulheres, em particular aquelas que são mães, acreditam que a propensão à violência é algo alheio à natureza humana, isto é, a imposição exógena dos ditames de uma cultura machista ou, pelo menos, masculina a pequenos "bons selvagens" que, imaturos, não descobriram ainda seu próprio pacifismo de base, sua vocação inata a virar a outra face. Impedindo seus filhos de adquirirem armas de brinquedo, elas lhes menosprezam a imaginação sem levar em conta que, nas mãos de um garoto, um cabo de vassoura se converte numa espada, uma tábua num escudo, uma lanterna num disparador de raios laser.
Diante da expectativa de escassos resultados verificáveis, é lícito presumir que os idealizadores do referendo tinham e têm em mente antes a difusão dos princípios nos quais crêem do que suas improváveis virtudes pragmáticas. A rigor, suas possíveis motivações decorrem da certeza de que áreas cada vez mais amplas do comportamento individual devem ser supervisionadas pelo Estado. Para eles, as benesses da intromissão estatal, do direito estatal de se imiscuir na vida privada dos cidadãos, normalmente lhes eclipsam os prejuízos, se é que estes existem. Um objetivo importante, nas circunvoluções cerebrais dos que sustentam tais teses, é o de perpétua e ininterruptamente "educar" as "massas ignaras", o "povão" que, desconhecendo seus lídimos interesses, só pode agradecer o nobre empenho de uma elite ou vanguarda que os esclareça e ilumine.
O referendo que, para a cidadania, se resume num pequeno passo (nem para frente, nem para trás, talvez apenas para o lado), será, porém, para os ideólogos de plantão, para as elites menos iluministas que "iluminadas", um grande salto, nem o inicial, nem o derradeiro, rumo à realização de suas metas, metas que o século 20 definiu e, com justiça, estigmatizou como "engenharia social".

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