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NELSON ASCHER
O referendo
O referendo sobre a comercialização de armas de
fogo e munição no Brasil é, de um
ponto de vista prático, uma bobagem: uma perda de tempo e dinheiro, um desperdício de saliva e
tinta.
Caso as previsões se confirmem
e se limite ainda mais o acesso legal dos cidadãos a revólveres, pistolas etc., a melhor conseqüência
que advirá disso, se formos otimistas, será uma redução marginal no número de acidentes letais
e, com muita sorte, uma baixa
mínima no índice de alguns poucos tipos de homicídio.
As preocupações que, no fundo,
movem a maioria das eleitores
bem-intencionados, a saber, a criminalidade, a sensação realista
ou exagerada de insegurança sobretudo nas grandes metrópoles,
essas mal serão afetadas pelo voto, pois, como diria o poeta T.S.
Eliot, entre a criação de uma lei e
sua implementação, cai a sombra. Não faltam em parte alguma
leis maravilhosas que, por mais
esperançosamente tenham vindo
à luz, nunca passaram de letra
morta.
Com um litoral do tamanho do
nosso, com a extensão das fronteiras nacionais, para nem falar das
nações que estão do outro lado
delas, nem o mais totalitário governo de esquerda ou direita nem
a força policial mais numerosa,
honesta e eficiente do mundo
conseguiriam manter sob controle o influxo de armas ilegais provenientes do exterior.
Trocando em miúdos, se ninguém é capaz de impedir, por
exemplo, a entrada de drogas ou
de imigrantes sem papéis inclusive em terras decentemente administradas, os criminosos autênticos darão, quando preciso, um
"jeitinho" de, desde um trivial
"três-oitão", passando pela Kalashnikov padrão até um lança-mísseis de última geração, obter
tudo o que considerem instrumento imprescindível de trabalho.
Nada de novo até aqui. Mas,
então, qual a função desse referendo, o que é que está, de fato,
sendo discutido?
O direito individual de possuir e
portar armas de fogo é, como o
aborto ou a pena capital, uma
dessas questões espinhosas que
envolvem muito mais do que o
observador ingênuo ou desinformado supõe, questões que definem o caráter de uma sociedade.
Há duas maneiras fundamentais, não mutuamente exclusivas,
de pensar as leis: de acordo com
os princípios (éticos, morais, políticos) que levaram à sua promulgação, ou segundo os resultados
que se espera que produzam.
Alguém pode ser contra o aborto mesmo sabendo da infelicidade que um rebento indesejado
tende a gerar, ou ser a favor dele
embora não ignore que, a longo
prazo, sua generalização contribui em diversos países para a importação de uma mão-de-obra
cuja proliferação potencialmente
acirra conflitos etno-religiosos.
De forma semelhante, outros
apoiariam ou não a execução de
criminosos independentemente
de seus efeitos positivos ou negativos sobre os níveis de criminalidade. Trata-se, nesses casos diversos, de opções que, malgrado
amiúde serem defendidas com
dados e estatísticas que apontam
para tais ou quais conseqüências,
enraízam-se em princípios que as
antecedem nem seriam abandonados perante evidências objetivas que os contradissessem.
Existe, assim, gente que julga
qualquer violência, seja no atacado, seja no varejo, ilegítima. Para
um pacifista radical, até um ato
indiscutível de autodefesa constitui uma abominação, quando
não significa pura e simplesmente
que a vítima, ao reagir, se confunde com o agressor. Tal alergia à
violência, encarnada na recusa a
distinguir entre a legítima e a ilegítima, tornou-se, nos dias atuais,
uma espécie de religião laica que,
nas elites bem-pensantes, atrai legiões crescentes de seguidores.
Doutrinários que são, eles também entendem que suas doutrinas, se aberta e claramente formuladas, jamais convenceriam o
grosso de tanto faz qual população.
Muitas mulheres, em particular
aquelas que são mães, acreditam
que a propensão à violência é algo alheio à natureza humana, isto é, a imposição exógena dos ditames de uma cultura machista
ou, pelo menos, masculina a pequenos "bons selvagens" que,
imaturos, não descobriram ainda
seu próprio pacifismo de base, sua
vocação inata a virar a outra face. Impedindo seus filhos de adquirirem armas de brinquedo,
elas lhes menosprezam a imaginação sem levar em conta que,
nas mãos de um garoto, um cabo
de vassoura se converte numa espada, uma tábua num escudo,
uma lanterna num disparador de
raios laser.
Diante da expectativa de escassos resultados verificáveis, é lícito
presumir que os idealizadores do
referendo tinham e têm em mente
antes a difusão dos princípios nos
quais crêem do que suas improváveis virtudes pragmáticas. A rigor, suas possíveis motivações decorrem da certeza de que áreas
cada vez mais amplas do comportamento individual devem ser supervisionadas pelo Estado. Para
eles, as benesses da intromissão
estatal, do direito estatal de se
imiscuir na vida privada dos cidadãos, normalmente lhes eclipsam os prejuízos, se é que estes
existem. Um objetivo importante,
nas circunvoluções cerebrais dos
que sustentam tais teses, é o de
perpétua e ininterruptamente
"educar" as "massas ignaras", o
"povão" que, desconhecendo seus
lídimos interesses, só pode agradecer o nobre empenho de uma
elite ou vanguarda que os esclareça e ilumine.
O referendo que, para a cidadania, se resume num pequeno passo (nem para frente, nem para
trás, talvez apenas para o lado),
será, porém, para os ideólogos de
plantão, para as elites menos iluministas que "iluminadas", um
grande salto, nem o inicial, nem o
derradeiro, rumo à realização de
suas metas, metas que o século 20
definiu e, com justiça, estigmatizou como "engenharia social".
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