São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 2008

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Análise

Obra de Nobel traduz culpa européia

Prêmio a Le Clézio chancela narrativa a serviço de mensagem e reconhece autor como agente do ambiente multicultural

MARCELO REZENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre o Prêmio Nobel de Literatura dado para a França em 1985, e este, entregue ontem a Jean-Marie Gustave Le Clézio, há uma distância que se mede não apenas em décadas, com o tempo, mas a partir de uma alteração de ritmo no discurso sobre a cultura, a política e seus sistemas. Na década de 1980, o ganhador foi Claude Simon, morto em 2005, aos 92 anos.
O nome de Simon é acompanhado pela experiência, guerra, dificuldade e pelo "Novo Romance", surgido na década de 1950 com a proposta de construir uma literatura na qual tudo está no domínio da liberdade, do risco e da invenção. Com Le Clézio há o retorno da história, de personagens com psicologia clara e de um presente comentário sobre as relações entre centro e metrópole, diferenças culturais e o passado de colonizadores e colonizados. Le Clézio aparece (uma aparição fulgurante) em 1963, quando seu romance "Le Procès-Verbal" faz todo o percurso necessário para a permanência de um autor: a aprovação crítica, o interesse de uma nova geração de leitores e a excitação da mídia, pela juventude do escritor -23 anos- e sua beleza.
O livro é o retrato de um período. Seu romance surge um ano após o fim da guerra entre a Argélia (então colônia) e a França, o colonizador que convocou uma legião de jovens para lutar em nome de uma causa que poucos conseguiam se identificar. Em "Le Procès-Verbal", um homem (Adam Pollo) não sabe se deixou uma clínica psiquiátrica ou o Exército, tem apenas o desejo de permanecer solitário, numa casa, com seus sombrios pensamentos.
A experiência da guerra, das colônias, marca profundamente a trajetória de Le Clézio. Nas décadas seguintes, e ao longo de seus mais de 40 livros, entre ensaios e ficção, ele se torna obcecado pela palavras "nômade", "errância" ou "evasão", colocando-se no lugar de um escritor em constante fuga. Viaja, mora em diferentes países.
Le Clézio mantém em sua fala, escrita e posicionamentos diante das relações entre nações um enjôo do Ocidente e a aflição permanente diante da história européia. "O mundo estava realmente doente? Esse arrepio, essa náusea, isso vinha de muito longe, de um tempo há muito passado", escreve em "Ritournelle de la Faim", romance que acaba de publicar na França.
Mais do que Le Clézio ter encontrado o Nobel, a operação parece ser de outra ordem: o Nobel encontra Le Clézio ao ver em sua obra uma representação da culpa diante do excluído, da narrativa a serviço de uma mensagem, do escritor como agente do ambiente multicultural e profeta de um bem-estar provocado pela aproximação dos povos em algum lugar do futuro. Le Clézio é o Nobel que deseja, ou precisa, que as partes fiquem em completo acordo. O planeta se parece ainda com Claude Simon, mas a vontade quase infantil é que se torne um dia Le Clézio.


MARCELO REZENDE é autor do romance "Arno Schmidt" (ed. Planeta, 2005) e do ensaio "Ciência do Sonho - A Imaginação Sem Fim do
Diretor Michel Gondry" (ed. Alameda, 2005).



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