|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Crítica/ "Meridiano de Sangue"
McCarthy reinventa o Velho Oeste
Romance do autor norte-americano que modernizou o western e antecedeu a "Trilogia da Fronteira" ganha nova edição
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Depois de explorar ao
seu modo raro o romance gótico em seus
quatro livros iniciais, Cormac
McCarthy alcançou a difícil
unanimidade ao modernizar o
western com "Meridiano de
Sangue", livro de 1985 ora reeditado no Brasil. Aproximando
do alto modernismo um gênero
associado ao cinema e ao folhetim pulp, o escritor americano
passou a ser comparado a Melville e a Faulkner, a ser elogiado
por Harold Bloom e a permanecer perto demais do cânone.
Em diversos aspectos, o universo fronteiriço de "Meridiano de Sangue" (a divisa com o
México; o limiar entre a adolescência e a idade adulta de seu
protagonista; a extinção do Velho Oeste frente ao século 20)
seria aprofundado e expandido
na posterior "Trilogia da Fronteira" (publicada aqui pela
Companhia das Letras), assim
como sua linguagem plena em
oralidade e de intenso apelo visual ("que une concisão e força
poética, tom coloquial e vigor
oratório", afirma com grande
acerto a orelha anônima de "A
Travessia").
Por meio das figuras quixotescas de rapazes muito jovens
em busca de um mundo e de
um modo de vida que já não
existem, a exemplo de John
Grady Cole e Billy Parham (da
"Trilogia") ou mesmo o kid de
"Meridiano de Sangue" (cabe
aqui -não cabe, na verdade- a
ressalva à opção infeliz de não
traduzir "kid" por "garoto" na
presente edição, retirando assim o personagem do anonimato que é representativo de sua
anomia e do caráter metonímico de sua relação com o universo sem lei que habita),
McCarthy fixa o estado caótico
e transitório da passagem do
último estágio da colonização
americana para aquele no qual
o Estado está presente (em geral chamado de "civilização").
E que preço se paga para se
atingir esse status. Baseado
parcialmente em episódios
reais, "Meridiano de Sangue"
narra a trajetória de um garoto
de 14 anos órfão de mãe que foge de casa e, entre vários percalços entre Texas e México,
adere à trupe do sanguinário
caçador de índios John Joel
Glanton e do juiz Holden (que é
a mais pura representação do
mal).
As desventuras pelas
quais passa o "kid" fazem o
inferno parecer apenas um spa
cuja sauna anda meio desregulada.
A brutalidade em McCarthy
tem sempre o apelo real da presença das fezes e do medo que a
geram. Não há nele resquícios
de nenhum heroísmo, e seus
homicidas e vítimas -não importa o papel que cumpram-
gemem e bufam e defecam ao
matar e morrer. Essas vidas dão
fim e se extinguem sem brilho
nenhum, nem mesmo o das lâminas das facas (que são foscas
e não refletem nada).
As cenas
de batalhas de "Meridiano de
Sangue" estão entre as mais vívidas da história da literatura.
Quase sempre relacionada a
um certo apocalipse dos valores masculinos, a obra de Cormac McCarthy parece mais indicativa da violência como motor a extinguir e regenerar aos
ciclos a ideia de humanidade.
Do mesmo modo como o big
bang gerou o Universo, os homens de seus romances nascem e renascem da lama e do
caos desse beco sem saída e do
big bangue-bangue cruel da
existência.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra).
MERIDIANO DE SANGUE
Autor: Cormac McCarthy
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 49,90 (352 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Documentário que chancela fuga de Polanski estreia na Suíça Próximo Texto: Réplica: Resenha expôs leitura apressada de obra Índice
|