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NELSON ASCHER
O homem que sabia demais
Sem muito o que fazer, A liga
para B: "Estou sabendo de tudo". "Tudo o quê ?" "Você sabe."
"Não sei de nada." "Eu sim."
"10% por seu silêncio." "Não."
"Meio a meio ?" "Fechado". Surpreso, A telefona então para C:
"Estou sabendo de tudo". "Não
conte para minha mulher." "Depende." "De quê ?" "De quanto."
Semanas depois, acham o corpo
de A boiando no Tietê. Durante o
enterro, Z comenta: "Ele sabia demais".
Essa piada ilustra como o valor
literário, de quando em quando,
surge e se consolida. A tradição
(ou o cânone) constitui-se até certo ponto de promissórias que, recebidas de uma geração, são gradualmente menos conferidas (e
quase nunca resgatadas) conforme passam às seguintes. Tipicamente, o professor manda o aluno
ler uma obra que este, devido a
quem a endossou, considerará a
priori boa. Caso aquela lhe desagrade, ele culpará não o autor, e
sim seu gosto deficiente, tratando
o quanto antes de corrigi-lo. O
professor, por seu turno, verá na
aquiescência do aluno a confirmação daquilo que lhe ensinara
seu próprio professor. Cada qual
pressupõe que o outro sabe do que
está falando.
Há, no entanto, algo a saber em
relação a tal ou qual livro, por
exemplo, ou melhor, existe ou já
existiu alguém que o soubesse de
fato? O valor literário tem no fundo um lastro consistente?
"No Meio do Caminho", que
Carlos Drummond de Andrade
(1902-87) publicou primeiro em
1928 e logo no seu volume de estréia, "Alguma Poesia" (1930),
deve ser o mais famoso poema
brasileiro do século 20. Uma busca na internet com o nome completo do poeta e o título do poema
resulta em quase 2.000 citações.
Mesmo os que mal se recordam
de quem foi o itabirano serão capazes de associá-lo a "tinha uma
pedra". O texto figura em todos os
manuais literários, todas as apostilas de cursinho e pode cair em
qualquer vestibular. Se há um
poema indiscutivelmente bom, é
esse. Será mesmo?
Tentemos uma interpretação
política. "No meio do caminho tinha uma pedra". O uso coloquialíssimo (e nos anos 20!) do verbo
"ter" revela imediatamente a posição social do "eu" lírico: ele pertence ao povo. O caminho: qual
seria este senão o que conduz ao
fim da exploração do homem pelo
homem? Quanto à pedra, ora, ela
configura certo obstáculo que, para um marxista genérico, equivaleria às relações de propriedade
capitalistas atravancando o progresso das forças produtivas, para
um lukacsiano corresponderia à
falsa consciência, para um frankfurtiano, à fragmentação da vida
num mundo desencantado, para
um trotskista, à convergência entre socialismo num só país e a ascensão do fascismo.
As redundâncias textuais denunciam materialmente a repetitividade das tarefas às quais o
taylorismo submetera o trabalhador, enquanto a descontinuidade
abrupta ("Nunca me esquecerei
desse acontecimento") aponta
para o momento de desalienação,
a faísca que acende a chama revolucionária ou, numa nota mais
pessimista, remete à memória das
possibilidades perdidas pela humanidade.
Agora, uma psicológica. A pedra, que está no centro, relaciona-se primariamente com a rigidez.
Será objeto de repulsa ou de desejo? Ambos. Aliás, qual a rigidez
que está em jogo? Simples: o caminho em questão, com sua clara
referência ao verso de abertura
da "Divina Comédia", é o da vida, e seu meio, a meia-idade da
qual o "ego" lírico se aproxima
ansioso por descobrir se ali ainda
disporá da rigidez.
A insegurança em face do futuro procura disfarçar-se atrás de
um verbo usado no passado, um
verbo que, ademais, propicia
duas leituras: uma impessoal (havia uma pedra), outra pessoal (alguém possuía uma pedra). A despeito (ou por causa) da rigidez
problemática, a pessoalidade desliza rumo à impessoalidade na
medida em que, como "pedra"
oculta/revela anagramaticamente a idéia de "perda", é o sujeito
do poema que se perdeu. Mas, às
vezes, uma pedra é somente uma
pedra (e/ou vice-versa).
Deixando de lado as interpretações mitológicas (a pedra de Sísifo), místico-orientalísticas ("tao"
é caminho em chinês), simbólico-arquetípicas (a Idade da Pedra, o
Neanderthal em todos nós) etc.,
talvez fosse melhor investigarmos
as circunstâncias em que nasceu o
poema. Qual seria seu valor se
não passasse de um acidente, um
empastelamento ocorrido ao fecharem a revista na qual sairia?
Digamos que fosse um bilhete que
Drummond escrevia à amante
lhe explicando que faltara ao encontro porque "no meio do caminho tinha uma pedra (e você sabe
a quem estou me referindo)",
quando, de repente, teve de escondê-lo entre seus papéis e ele acabou na Redação junto com os
poemas de verdade. Uma vez publicado, o texto escandalizou o
público. Que Drummond tenha
composto o antipoema desafiador das expectativas literárias de
uma época merece registro histórico, mas o que tem isso a ver com
sua qualidade? Se não houvesse
escândalo e o poeta sumisse em
seguida, quem ainda leria "No
Meio do Caminho"?
Provavelmente ninguém. Tampouco seriam lembrados versos
idênticos se publicados em outra
hora ou lugar por um Carlos
qualquer de Andrade.
Então o maior poema brasileiro
moderno não vale nada? Sim e
não. Ao escrever, no início da carreira, um amontoado de palavras
sem pé nem cabeça, um aglutinado verbal virtualmente vazio no
qual cada freguês despeja um sentido diferente, ou seja, que todo
mundo acha que sabe o que quer
dizer, Drummond fez uma aposta: a de que seu trabalho subsequente não tanto preencheria como envolveria de significados esse
vácuo. Assim, ele como que assegurou saber de antemão aonde ia
e que, se chegasse, a pedra originalmente oca teria se tornado
preciosa. Não é que deu certo ?
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