UOL


São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

O homem que sabia demais

Sem muito o que fazer, A liga para B: "Estou sabendo de tudo". "Tudo o quê ?" "Você sabe." "Não sei de nada." "Eu sim." "10% por seu silêncio." "Não." "Meio a meio ?" "Fechado". Surpreso, A telefona então para C: "Estou sabendo de tudo". "Não conte para minha mulher." "Depende." "De quê ?" "De quanto." Semanas depois, acham o corpo de A boiando no Tietê. Durante o enterro, Z comenta: "Ele sabia demais".
Essa piada ilustra como o valor literário, de quando em quando, surge e se consolida. A tradição (ou o cânone) constitui-se até certo ponto de promissórias que, recebidas de uma geração, são gradualmente menos conferidas (e quase nunca resgatadas) conforme passam às seguintes. Tipicamente, o professor manda o aluno ler uma obra que este, devido a quem a endossou, considerará a priori boa. Caso aquela lhe desagrade, ele culpará não o autor, e sim seu gosto deficiente, tratando o quanto antes de corrigi-lo. O professor, por seu turno, verá na aquiescência do aluno a confirmação daquilo que lhe ensinara seu próprio professor. Cada qual pressupõe que o outro sabe do que está falando.
Há, no entanto, algo a saber em relação a tal ou qual livro, por exemplo, ou melhor, existe ou já existiu alguém que o soubesse de fato? O valor literário tem no fundo um lastro consistente?
"No Meio do Caminho", que Carlos Drummond de Andrade (1902-87) publicou primeiro em 1928 e logo no seu volume de estréia, "Alguma Poesia" (1930), deve ser o mais famoso poema brasileiro do século 20. Uma busca na internet com o nome completo do poeta e o título do poema resulta em quase 2.000 citações. Mesmo os que mal se recordam de quem foi o itabirano serão capazes de associá-lo a "tinha uma pedra". O texto figura em todos os manuais literários, todas as apostilas de cursinho e pode cair em qualquer vestibular. Se há um poema indiscutivelmente bom, é esse. Será mesmo?
Tentemos uma interpretação política. "No meio do caminho tinha uma pedra". O uso coloquialíssimo (e nos anos 20!) do verbo "ter" revela imediatamente a posição social do "eu" lírico: ele pertence ao povo. O caminho: qual seria este senão o que conduz ao fim da exploração do homem pelo homem? Quanto à pedra, ora, ela configura certo obstáculo que, para um marxista genérico, equivaleria às relações de propriedade capitalistas atravancando o progresso das forças produtivas, para um lukacsiano corresponderia à falsa consciência, para um frankfurtiano, à fragmentação da vida num mundo desencantado, para um trotskista, à convergência entre socialismo num só país e a ascensão do fascismo.
As redundâncias textuais denunciam materialmente a repetitividade das tarefas às quais o taylorismo submetera o trabalhador, enquanto a descontinuidade abrupta ("Nunca me esquecerei desse acontecimento") aponta para o momento de desalienação, a faísca que acende a chama revolucionária ou, numa nota mais pessimista, remete à memória das possibilidades perdidas pela humanidade.
Agora, uma psicológica. A pedra, que está no centro, relaciona-se primariamente com a rigidez. Será objeto de repulsa ou de desejo? Ambos. Aliás, qual a rigidez que está em jogo? Simples: o caminho em questão, com sua clara referência ao verso de abertura da "Divina Comédia", é o da vida, e seu meio, a meia-idade da qual o "ego" lírico se aproxima ansioso por descobrir se ali ainda disporá da rigidez.
A insegurança em face do futuro procura disfarçar-se atrás de um verbo usado no passado, um verbo que, ademais, propicia duas leituras: uma impessoal (havia uma pedra), outra pessoal (alguém possuía uma pedra). A despeito (ou por causa) da rigidez problemática, a pessoalidade desliza rumo à impessoalidade na medida em que, como "pedra" oculta/revela anagramaticamente a idéia de "perda", é o sujeito do poema que se perdeu. Mas, às vezes, uma pedra é somente uma pedra (e/ou vice-versa).
Deixando de lado as interpretações mitológicas (a pedra de Sísifo), místico-orientalísticas ("tao" é caminho em chinês), simbólico-arquetípicas (a Idade da Pedra, o Neanderthal em todos nós) etc., talvez fosse melhor investigarmos as circunstâncias em que nasceu o poema. Qual seria seu valor se não passasse de um acidente, um empastelamento ocorrido ao fecharem a revista na qual sairia? Digamos que fosse um bilhete que Drummond escrevia à amante lhe explicando que faltara ao encontro porque "no meio do caminho tinha uma pedra (e você sabe a quem estou me referindo)", quando, de repente, teve de escondê-lo entre seus papéis e ele acabou na Redação junto com os poemas de verdade. Uma vez publicado, o texto escandalizou o público. Que Drummond tenha composto o antipoema desafiador das expectativas literárias de uma época merece registro histórico, mas o que tem isso a ver com sua qualidade? Se não houvesse escândalo e o poeta sumisse em seguida, quem ainda leria "No Meio do Caminho"?
Provavelmente ninguém. Tampouco seriam lembrados versos idênticos se publicados em outra hora ou lugar por um Carlos qualquer de Andrade.
Então o maior poema brasileiro moderno não vale nada? Sim e não. Ao escrever, no início da carreira, um amontoado de palavras sem pé nem cabeça, um aglutinado verbal virtualmente vazio no qual cada freguês despeja um sentido diferente, ou seja, que todo mundo acha que sabe o que quer dizer, Drummond fez uma aposta: a de que seu trabalho subsequente não tanto preencheria como envolveria de significados esse vácuo. Assim, ele como que assegurou saber de antemão aonde ia e que, se chegasse, a pedra originalmente oca teria se tornado preciosa. Não é que deu certo ?



Texto Anterior: Dança/crítica: O Momix entre a arte e o espetáculo
Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: Eva Wilma comemora 50 anos de carreira
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.