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MARCELO COELHO
Humor de vítima em tempos de violência
Guarita em estilo neoclássico, decorada com lustre de
cristal e móveis de veludo. Cerca
de arame farpado com motivos
florais ou infantis (nesse caso, é a
silhueta de Mickey que se repete
regularmente). Kit assalto: dentro
de uma maleta de estilo executivo, uma pilha de dólares falsos,
um Rolex de ouro suspeitíssimo,
um celular de fachada.
Itens desse tipo constam da
bem-humorada exposição
"Happyland 2", idealizada pelos
arquitetos Isay Weinfeld e Marcio
Kogan, em cartaz no Museu da
Casa Brasileira até dia 14 deste
mês. A dupla já realizou outras
mostras desse tipo. Na Bienal de
2002, Weinfeld e Kogan construíram a maquete de uma cidade inteira, idealizada segundo os princípios aberrantes da segurança
total: abrigos antiterrorismo,
mansões-presídio, estádios à prova de sei lá o quê.
Vale a pena citar alguns dos
textos explicativos que acompanham cada objeto exposto no
Museu da Casa Brasileira. O do
"Carro-Cor", por exemplo, diz o
seguinte: "Coube ao famosésimo
decorador Juvenildo Lamberto a
incumbência de decorar o automóvel do seqüestrado-relâmpago
da semana (...) O porta-malas
deste carésimo automóvel foi todo pensado para oferecer mais
conforto e bem-estar à infeliz seqüestrada. Dotado de aparelhos
de alta tecnologia totalmente up-to-date, tudo ali foi pensado nos
mínimos detalhes, inclusive no
caso de o seqüestrado ser intelectual há livros de auto-ajuda (...)
Chiquérrimo!".
Dentro do porta-malas acarpetado, há duas almofadas com a
estampa da bandeira do Brasil,
além de minibar, televisão em
miniatura e mesmo algumas camisinhas.
O texto da guarita neoclássica é
assim: "Guarita estilo Maison
Mouton-Marchetin. Estamos customizando as guaritas! Esta, no
mais puro estilo francês, é só para
mansões de fino trato. Não é pra
gente que come macarrão, é pra
gente que come macaron. Se você
que está lendo é chique, sabe do
que estou falando. Se não sabe,
tente o modelo da guarita ao lado".
Olhamos então para uma outra
guarita, "estilo Soho-Loft": tijolinhos brancos, dúplex, esquadrias
pretas, móveis clean, um retrato
de Che Guevara no mezzanino.
"Se você não é chique o suficiente
para comprar a guarita Maison
Mouton-Marchetin, fique então
com esta porcaria de guarita estilo Loft. Provavelmente você a merece..."
Algumas idéias de Weinfeld e
Kogan lembram o surrealismo
em sua capacidade de desconcertar o espectador: gostei da grade
que, em vez de ostentar simples
pontas de lança de ferro pintado,
traz em cada uma das hastes um
revólver apontado para o pedestre.
Tudo muito criativo, irônico,
mas... não sei bem. Várias coisas
me deixam reticente com essa exposição. Não me refiro a alguns
traços de preconceito que aparecem nos textos -como o de criar
uma "linha gay", com margaridinhas na decoração do arame farpado. Momentos meio gratuitos
como esse talvez se devam, sobretudo, à necessidade um tanto desesperada de fazer humor em cada detalhe da exposição, sem deixar nenhum espaço desocupado,
digamos assim, para a reflexão do
espectador.
O espírito da exposição se revela
crispado, um tanto fora de controle. Como Weinfeld e Kogan denunciam uma situação que nos
preocupa realmente, poderíamos
dizer que a mostra suscita mais
risos nervosos do que hilaridade
autêntica no espectador. O problema, entretanto, não é esse. O
problema é que os próprios idealizadores da exposição parecem
mais nervosos do que nós. Seus
acessos humorísticos têm a estridência de quem está apavorado;
a nós, espectadores, cabe a missão
de aderir ao estado de espírito dos
autores, mais do que de ver expressas ou resolvidas as angústias
que também sentimos.
Provavelmente por isso, os textos da mostra hesitam entre a paródia publicitária e o ultraje ao
leitor: "Fique então com esta porcaria de guarita estilo Loft etc.".
Ou: "Você pode continuar lixando calmamente as unhas de suas
mãos...". De um lado, há a convicção de que "as elites", sendo responsáveis pelos males do país, no
fundo mereciam mesmo ser seqüestradas. De outro, há a convicção de que uma classe média estreita, pronta a defender a pena
de morte, está paranóica com o
problema da segurança.
Ao mesmo tempo, e contraditoriamente com esse espírito cáustico, superior, o empenho da mostra se volta a uma denúncia "da
violência", de fundo sério, urgente, cívico. Mas a violência enfocada não é a que vitima os moradores da periferia; estamos falando
de "nós mesmos", de "nossa pele".
Bem típico da situação brasileira,
aliás: quanto mais enclausurado
dentro dos próprios interesses e
padrões de consumo, mais "cidadão" o sujeito se sente; quanto
mais rico, mais defensor da "classe média"; quanto mais privilegiado, mais vítima.
Há de fato um humor de vítima, exacerbado e sinistro, nessa
exposição. Se os objetos inventados por Weinfeld e Kogan fossem
os "gadgets" de um filme humorístico, tudo talvez funcionasse
melhor: o ponto de vista do narrador seria capaz de conferir mais
distanciamento e leveza ao conjunto. O humorismo procura algum tipo de escape, constrói um
olhar "de fora" sobre a situação.
"Happyland 2" não consegue fazer isso. Como as pessoas a quem
ironiza e representa, sofre de um
dilema básico: quer julgar as coisas de fora, mas sem se ausentar
da posição em que está. É a velha
história: este país não tem jeito,
mas sempre se pode dar um pulo
em Miami.
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