São Paulo, quarta-feira, 10 de novembro de 2004

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MARCELO COELHO

Humor de vítima em tempos de violência

Guarita em estilo neoclássico, decorada com lustre de cristal e móveis de veludo. Cerca de arame farpado com motivos florais ou infantis (nesse caso, é a silhueta de Mickey que se repete regularmente). Kit assalto: dentro de uma maleta de estilo executivo, uma pilha de dólares falsos, um Rolex de ouro suspeitíssimo, um celular de fachada.
Itens desse tipo constam da bem-humorada exposição "Happyland 2", idealizada pelos arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan, em cartaz no Museu da Casa Brasileira até dia 14 deste mês. A dupla já realizou outras mostras desse tipo. Na Bienal de 2002, Weinfeld e Kogan construíram a maquete de uma cidade inteira, idealizada segundo os princípios aberrantes da segurança total: abrigos antiterrorismo, mansões-presídio, estádios à prova de sei lá o quê.
Vale a pena citar alguns dos textos explicativos que acompanham cada objeto exposto no Museu da Casa Brasileira. O do "Carro-Cor", por exemplo, diz o seguinte: "Coube ao famosésimo decorador Juvenildo Lamberto a incumbência de decorar o automóvel do seqüestrado-relâmpago da semana (...) O porta-malas deste carésimo automóvel foi todo pensado para oferecer mais conforto e bem-estar à infeliz seqüestrada. Dotado de aparelhos de alta tecnologia totalmente up-to-date, tudo ali foi pensado nos mínimos detalhes, inclusive no caso de o seqüestrado ser intelectual há livros de auto-ajuda (...) Chiquérrimo!".
Dentro do porta-malas acarpetado, há duas almofadas com a estampa da bandeira do Brasil, além de minibar, televisão em miniatura e mesmo algumas camisinhas.
O texto da guarita neoclássica é assim: "Guarita estilo Maison Mouton-Marchetin. Estamos customizando as guaritas! Esta, no mais puro estilo francês, é só para mansões de fino trato. Não é pra gente que come macarrão, é pra gente que come macaron. Se você que está lendo é chique, sabe do que estou falando. Se não sabe, tente o modelo da guarita ao lado".
Olhamos então para uma outra guarita, "estilo Soho-Loft": tijolinhos brancos, dúplex, esquadrias pretas, móveis clean, um retrato de Che Guevara no mezzanino. "Se você não é chique o suficiente para comprar a guarita Maison Mouton-Marchetin, fique então com esta porcaria de guarita estilo Loft. Provavelmente você a merece..."
Algumas idéias de Weinfeld e Kogan lembram o surrealismo em sua capacidade de desconcertar o espectador: gostei da grade que, em vez de ostentar simples pontas de lança de ferro pintado, traz em cada uma das hastes um revólver apontado para o pedestre.
Tudo muito criativo, irônico, mas... não sei bem. Várias coisas me deixam reticente com essa exposição. Não me refiro a alguns traços de preconceito que aparecem nos textos -como o de criar uma "linha gay", com margaridinhas na decoração do arame farpado. Momentos meio gratuitos como esse talvez se devam, sobretudo, à necessidade um tanto desesperada de fazer humor em cada detalhe da exposição, sem deixar nenhum espaço desocupado, digamos assim, para a reflexão do espectador.
O espírito da exposição se revela crispado, um tanto fora de controle. Como Weinfeld e Kogan denunciam uma situação que nos preocupa realmente, poderíamos dizer que a mostra suscita mais risos nervosos do que hilaridade autêntica no espectador. O problema, entretanto, não é esse. O problema é que os próprios idealizadores da exposição parecem mais nervosos do que nós. Seus acessos humorísticos têm a estridência de quem está apavorado; a nós, espectadores, cabe a missão de aderir ao estado de espírito dos autores, mais do que de ver expressas ou resolvidas as angústias que também sentimos.
Provavelmente por isso, os textos da mostra hesitam entre a paródia publicitária e o ultraje ao leitor: "Fique então com esta porcaria de guarita estilo Loft etc.". Ou: "Você pode continuar lixando calmamente as unhas de suas mãos...". De um lado, há a convicção de que "as elites", sendo responsáveis pelos males do país, no fundo mereciam mesmo ser seqüestradas. De outro, há a convicção de que uma classe média estreita, pronta a defender a pena de morte, está paranóica com o problema da segurança.
Ao mesmo tempo, e contraditoriamente com esse espírito cáustico, superior, o empenho da mostra se volta a uma denúncia "da violência", de fundo sério, urgente, cívico. Mas a violência enfocada não é a que vitima os moradores da periferia; estamos falando de "nós mesmos", de "nossa pele". Bem típico da situação brasileira, aliás: quanto mais enclausurado dentro dos próprios interesses e padrões de consumo, mais "cidadão" o sujeito se sente; quanto mais rico, mais defensor da "classe média"; quanto mais privilegiado, mais vítima.
Há de fato um humor de vítima, exacerbado e sinistro, nessa exposição. Se os objetos inventados por Weinfeld e Kogan fossem os "gadgets" de um filme humorístico, tudo talvez funcionasse melhor: o ponto de vista do narrador seria capaz de conferir mais distanciamento e leveza ao conjunto. O humorismo procura algum tipo de escape, constrói um olhar "de fora" sobre a situação. "Happyland 2" não consegue fazer isso. Como as pessoas a quem ironiza e representa, sofre de um dilema básico: quer julgar as coisas de fora, mas sem se ausentar da posição em que está. É a velha história: este país não tem jeito, mas sempre se pode dar um pulo em Miami.


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