São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 2005

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NINA HORTA

Dois chefs, direito e avesso

Fui assistir à aula de um jovem cozinheiro do restaurante Moto, de Chicago. O tal que faz comida normal e comida de papel. Foi atrasando, dando fome, como seria essa comida? Pediram desculpas, por que iria demorar mais meia hora. E por quê? A impressora estava com defeito! O jantar atrasou porque a impressora estava com defeito... Coisas da comida nova.
O papel é comestível e tem o formato de uma folha de papel sulfite. Depois de impresso, é recortado em pedaços do tamanho de um bilhete de cinema. Ora com o desenho de uma palmeirinha e cocos e gosto perfeito de coco, ora sushizinhos com gosto de sushi.
Os cartuchos de tinta são cheios de tinturas orgânicas vegetais, os sabores, misturados no restaurante, os mais puros possíveis, e o cozinheiro imprime o que queremos comer (e o que ele já saiba fazer). São como hóstias hereges, que grudam no céu da boca, hóstias quadradas com sabor!
O que significa que, se você atrasar e alguém em casa estiver esperando por comida... pode mandar por email. Sim, está chegando o dia. Atrasou no escritório? Mande o cardápio por email, quem ficou em casa imprime e come.
Todo mundo que vê a tal comida faz cara de desentendido. Que besteira, mais uma desses "chefs", não sabem o que inventar! Acontece que, debaixo daquele morango "fake", tem coisa. É preciso parar e refletir. É comida ou parece ser? Aparência e realidade se confundindo, um item filosófico perene. Por que não dar certa atenção? Mundo sem graça quando tudo é o que parece ser, e triste a vida cujas verdades não são desafiadas nunca. O jantar atrasou porque a impressora quebrou, por que não?
E veio outro chef, este ainda está no Brasil, no rumo da Bahia e do Rio, Laurent Tourondel. A Folha deu notícia que ele daria uma aula em São Paulo e fui checar. Dizem que tem a mão muito boa para peixe. Francês, cozinhando em Nova York e, segundo ele, fazendo comida que nova-iorquino gosta.
Vou contar a verdade, não gosto muito de aula de cozinha. Talvez por causa do excesso das que já assisti, sempre depois do almoço, vai dando uma soneirinha boa, a sala quente, o chef lá sozinho fazendo as dele, a gente olhando num telão, para experimentar dão um palito que se passa no molho para ver o gosto, enfim, aula de cozinha não é meu forte.
O campus do Senac, muito grande e simpático, fervendo de gente. O mestre-cuca visitante, nada demais, mais para menos até, nem carismático ou cheio de gestos ou muito articulado. Como professor, prometeu ensinar uma entrada já comum, ceviche de atum com abacate e molhinho de wasabi; depois, risoto tailandês (?). Prato mais estapafúrdio, vai misturar pasta de curry e curry indiano em pó, caldo de galinha e caldo de camarões, leite de coco, abobrinha, camarões... Este, então, não quero nem provar, imaginem, um risoto "surf and turf" com gosto de frango ao curry.
Pois acreditem, pasmem, raramente digo isto, conheço uns cinco chefs vivos que acho bons, vá lá, dez, o homem é daquelas preciosidades que sabe cozinhar, daquelas pessoas que nascem com um belíssimo paladar e fez uma comida brilhante, tudo perfeito, exatamente no ponto, no jeito. Cozinha simplesmente muito bem e cozinhará sempre, mudem as modas, ele tem a graça. O dom. Aprendeu com a avó, é claro, a maioria dos chefs franceses aprendeu com a avó. E, como bom francês, não usava toque nem redinha e provava a comida enfiando o dedo na panela.
A comida, equilibradíssima, e tudo feito sem grande esforço aparente. Nada tinha gosto excessivo, mas a mistura é que formava o sabor novo. Não tinha sabor de curry nem de wasabi nem de coco, era simplesmente bom. E muito sutil.
E, nessa cozinha fusion, a mistura desequilibrada é o maior perigo. Com certeza, apesar do chef não se gabar disso, tem uma formação básica francesa, mais a avó, sem dúvida. Muito poucos chefs sabem desviar da rota do clássico, do aprendido, e fazer o novo que seja bom, prazeroso. Os que sabem que devem ser comemorados e aplaudidos. Uma emoção.
Talentosíssimo, o monsieur Tourondel. E o lugar para ele estar é Nova York, mesmo, sempre achei os franceses de Nova York os melhores, pode ser?


Laurent Tourondel é co-autor do livro "Go Fish" (ed. Wiley, R$ 118; 304 págs.)
@ - ninahort@uol.com.br


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