São Paulo, sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Dois homens e duas moças

Edmundo, embora casado, ainda mexia com o imaginário das mocinhas da Tijuca

SYLVAN ESPERAVA Edmundo na calçada do Itaú, esquina da Atlântica com a Rainha Elisabeth. O guarda já o ameaçara de multa se demorasse mais tempo.
Ele olhava o relógio e desculpava o amigo. Com a mulher internada havia tanto tempo e sob risco de morte, Edmundo fazia esforço para ser o mesmo, mas alguma coisa soava falsa nele. O atraso seria um sintoma, Edmundo podia ser leviano em tudo, menos em questão de tempo. Um minuto para ele era um minuto, um ano era um ano, um século era um século. Não fora ele quem inventara que o tempo é dinheiro, mas, para ele, o tempo era uma moeda concreta, que ele parecia trazer no bolso e na alma.
O guarda vinha vindo outra vez, sacudindo o caderninho da multas, mas o BMW azul metálico de Edmundo apareceu lá atrás, ele chegava. Teria de deixar o carro na garagem de seu prédio, tinham combinado ir no carro de Sylvan, que era solteiro, não tinha mulher morrendo no hospital. E o mais importante: fora dele a iniciativa de arranjar as duas moças, uma delas gostaria de ser apresentada a Edmundo, era da zona norte, um pouco reprimida, mais reprimida do que tímida, fizera-se amiga de uma amiga de Sylvan, sabia que se tratava de um companheiro ex-campeão de asa delta. Embora casado, pai de dois adolescentes que faziam surfe no Arpoador, Edmundo ainda mexia com o imaginário meio fatigado das mocinhas da Tijuca.
Ao entrar no carro de Sylvan, antes que o amigo reclamasse, ele reclamou do encontro:
-Sylvan, não me leve a mal, mas não estou a fim... Sinceramente...
O carro contornava o posto da Shell e entrava na alameda que corta a fonte da Saudade ao meio:
-Estamos chegando e esse papo... Francamente, nem parece que estamos num programa... Vou sair com Glorinha e você vai pescar um capim novo...
Pararam na pequena curva em subida que dá para a ladeira do Sacopã. Fora o ponto de encontro marcado por Glorinha, o pai dela já conhecia o Golf prateado de Sylvan.
Na noite em que dormiram num hotel da Barra, o velho ficara preocupado com a demora da filha, passara a noite na varanda do apartamento para saber como e com quem a filha chegaria. Viu o carro parar em frente à portaria, Glorinha saltar, acenar para dentro do carro, numa despedida que equivalia a um "até outro dia" ou "até outra noite".
Esperaram um pouco. Como Edmundo naquela tarde, as mulheres, jovens ou velhas, sempre se atrasam. Só as provincianas chegam na hora, geralmente antes.
Mais cinco minutos, e as duas vinham vindo. Glorinha olhava para trás e para cima, temendo que o pai estivesse na varanda do apartamento fiscalizando para onde ela ia com a amiga da zona norte. Na cabeça do velho, podia ser um álibi, uma certeza de programa honesto, como podia ser o contrário, bem ao contrário. Os velhos sempre pensam em sacanagem.
-Lá vem elas... O capim é mesmo novinho... Tipo tijucana, boa de coxas e de bunda...
Edmundo olhou a mocinha que vinha em direção a ele. A ele não, ao mito fatigado que ainda fazia sucesso com as mocinhas decepcionadas com os jovens que elas consideravam babacas.
Lembrava-se da noite em que Fernando, o filho mais velho, ainda nos 14 anos, chegou em casa meio drogado e perguntou ao pai se era babaca mesmo. Edmundo quis saber por quê. Fernando disse que a garota que encontrara numa festinha, depois de dançarem e terem cheirado coca, virara-se subitamente para ele e decretara:
-Babaca!
O nome dela era Patrícia. Nome que fora moda, na zona sul, dez, 15 anos passados. Prazer, prazer, desculpe o atraso, Edmundo passou para o banco de trás, para ficar ao lado da moça. Glorinha tomou o assento do carona, beijou rapidamente Sylvan, queixou-se do calor, queria ir para o mais longe possível da cidade, onde o mar e o vento são mais fortes e tudo é mais deserto.
Um código para ajudar a amiga. Se falasse diretamente em ir para a Barra, a proximidade dos hotéis poderia assustar Patrícia, embora soubesse que Edmundo, com a experiência dos quase velhos, teria classe suficiente para dizer que não era nada, apenas mais conforto para um drinque, um bate-papo entre duas gerações verdadeiramente interessadas em se conhecer.
Para dar início ao diálogo de gerações, Patrícia beijou Edmundo no rosto, num gesto que parecia pedir a bênção.


Texto Anterior: Seminário da Bienal discute o Acre
Próximo Texto: Fotografia: Mostra na Fau-Usp enfoca patrimônio cultural
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.