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CRÍTICA
Nova obra do autor é "ritual de passagem"
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Talvez tenha sido a contragosto, mas o fato é que o
narrador e personagem de si
mesmo Marcelo Mirisola descobriu a existência do "outro",
na verdade, de "outras", personificadas em Joana e uma filha,
que ele nunca teve, "assassinada" por uma pílula do dia seguinte. E, por isso, seu humor e
sua enviesada dicção reflexiva
ficaram melhores. Pode-se
mesmo dizer que, em seu novo
romance, o autor abandona
uma espécie de masturbação literária que tendia ao curto-circuito e se tornara marca registrada de seus livros e, com "esforço, sofrimento e ironia",
percebe que pode render mais.
Desde sua primeira obra, era
fácil notar que se tratava de um
escritor diferente. O problema
é que a surpresa inicial logo se
transformou em irritação (o
que não é ruim) e, em seguida,
em cansaço (o que já é mais
complicado). Ele corria, assim,
um sério risco de se tornar algo
como uma criança prodígio
depois de crescida, quando a
novidade e o suposto encantamento deixam de existir e sobram melancolia e repetição.
Com "Joana a Contragosto",
contudo, Mirisola consegue
dar o passo adiante. Na orelha
do livro, Ricardo Lísias menciona com acerto que o texto
tem algo de um ritual de passagem. Mantém-se a obsessão
corrosiva com a própria vida
(ficcional) e com uma memória muito particular, preenchida com escombros do kitsch,
do pop, da solidão do espaço
urbano e esporádicas referências eruditas. Mas, para lidar
com a dor dessa relação que começa e rapidamente termina
("Tripudiamos. Deve ter sido
amor. Foi uma merda."), ele é
forçado a mudar ("Ultimamente não tenho alternativa diferente de ser o que eu nunca
fui"), tornando-se mais generoso e menos autocomplacente: "Depois de ter cometido um
"eu te amo" pela primeira vez na
vida, fica muito difícil voltar a
Primo Levi, quase impossível
reler Cioran... depois de ter
exercido a consciência amorosa da babaquice, o sujeito torna-se efetivamente um babaca.
Vai para a sarjeta, chafurda".
Resta saber que escritor-personagem vai surgir após esse ritual: quais serão as seqüelas literárias da "dor" dessa filha
vislumbrada e da convivência
abortada com essa mulherzinha de personalidade difícil.
Uma boa alternativa para Mirisola seria insistir na idéia de
contragosto, incorporá-la, gerar conflito, resistir ao que é natural para ele.
Adriano Schwartz é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP-Leste, autor de "O Abismo Invertido" (Globo)
Joana a Contragosto
Autor: Marcelo Mirisola
Editora: Record
Quanto: R$ 27,90 (192 págs.)
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