São Paulo, sábado, 10 de dezembro de 2005

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CRÍTICA

Nova obra do autor é "ritual de passagem"

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Talvez tenha sido a contragosto, mas o fato é que o narrador e personagem de si mesmo Marcelo Mirisola descobriu a existência do "outro", na verdade, de "outras", personificadas em Joana e uma filha, que ele nunca teve, "assassinada" por uma pílula do dia seguinte. E, por isso, seu humor e sua enviesada dicção reflexiva ficaram melhores. Pode-se mesmo dizer que, em seu novo romance, o autor abandona uma espécie de masturbação literária que tendia ao curto-circuito e se tornara marca registrada de seus livros e, com "esforço, sofrimento e ironia", percebe que pode render mais.
Desde sua primeira obra, era fácil notar que se tratava de um escritor diferente. O problema é que a surpresa inicial logo se transformou em irritação (o que não é ruim) e, em seguida, em cansaço (o que já é mais complicado). Ele corria, assim, um sério risco de se tornar algo como uma criança prodígio depois de crescida, quando a novidade e o suposto encantamento deixam de existir e sobram melancolia e repetição.
Com "Joana a Contragosto", contudo, Mirisola consegue dar o passo adiante. Na orelha do livro, Ricardo Lísias menciona com acerto que o texto tem algo de um ritual de passagem. Mantém-se a obsessão corrosiva com a própria vida (ficcional) e com uma memória muito particular, preenchida com escombros do kitsch, do pop, da solidão do espaço urbano e esporádicas referências eruditas. Mas, para lidar com a dor dessa relação que começa e rapidamente termina ("Tripudiamos. Deve ter sido amor. Foi uma merda."), ele é forçado a mudar ("Ultimamente não tenho alternativa diferente de ser o que eu nunca fui"), tornando-se mais generoso e menos autocomplacente: "Depois de ter cometido um "eu te amo" pela primeira vez na vida, fica muito difícil voltar a Primo Levi, quase impossível reler Cioran... depois de ter exercido a consciência amorosa da babaquice, o sujeito torna-se efetivamente um babaca. Vai para a sarjeta, chafurda".
Resta saber que escritor-personagem vai surgir após esse ritual: quais serão as seqüelas literárias da "dor" dessa filha vislumbrada e da convivência abortada com essa mulherzinha de personalidade difícil. Uma boa alternativa para Mirisola seria insistir na idéia de contragosto, incorporá-la, gerar conflito, resistir ao que é natural para ele.


Adriano Schwartz é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP-Leste, autor de "O Abismo Invertido" (Globo)

Joana a Contragosto
    
Autor: Marcelo Mirisola
Editora: Record
Quanto: R$ 27,90 (192 págs.)


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