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NELSON ASCHER
Está na cara
O próprio Chávez deve se assemelhar, e muito, à imagem que projeta, a de um machão inseguro
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TEMPOS atrás eu fazia de carro,
diariamente, o mesmo percurso e parava sempre, cerca
de um minuto e meio, diante do
mesmo semáforo. No primeiro semestre de 1989 havia, naquela esquina, um grande outdoor com a foto de um candidato às eleições presidenciais. Eu lera a seu respeito o que
havia para se ler, ouvira suas entrevistas, discutira com amigos e assim
por diante. Nada, porém, me deu a
impressão de conhecê-lo melhor do
que aquele momento diário de face a
face com sua imagem.
Diz-se que, chegadas a determinada idade, as pessoas assumem o aspecto, o rosto que merecem. Em alguns casos, por mais expansivos, generosos e aparentemente normais
que sejam os sorrisos, a cara merecida transparece mais cedo ao olhar
experiente ou apenas insistente.
Como passei a maior parte do segundo semestre daquele ano na Europa Centro-Oriental, acompanhando-lhe os vertiginosos desdobramentos políticos que haviam me
colhido de surpresa, eu me esquecera daquele sorriso forçado, daquele
instantâneo que parecia ter sido
inúmeras vezes repetido de modo a
flagrar não um momento de naturalidade, mas um raro lapso de autocontrole. E tão pasmo quanto me
deixara o desmoronar do Muro de
Berlim, deixou-me, ao regressar, a
constatação de que aquele era o rosto de nosso futuro presidente: Fernando Collor de Mello.
Nada, hoje em dia, separa tão nitidamente a esquerda da não-esquerda como a atitude de quem está sendo testado diante de Hugo Chávez.
O teste consiste menos em aprovar
ou desaprovar suas iniciativas políticas do que simpatizar ou antipatizar com sua imagem. E, no entanto,
inclusive em termos de aparência,
seria difícil encontrar alguém que
mais se aproxime de um arquétipo
clássico, o do gorila latino-americano. Se a Venezuela é, como insistem
seus admiradores, um país democrático e ele, um democrata exemplar, então há decerto algo de profundamente errado com os modelos
que prevalecem na Europa Ocidental, na América do Norte e no Brasil.
Mas, também, o que é a democracia, certo? Todos os regimes comunistas insistiam em se chamar de democráticos ("democracias populares") e, quanto a aceitar resultados
desfavoráveis de referendos e votações, tanto Collor como Augusto Pinochet foram mais longe, concordando em abrir mão do poder, algo
que o venezuelano ainda não fez,
nem consta que o tirano chileno tivesse comparado a vitória de seus
opositores à matéria fecal. Se Chávez acatou os resultados do recente
plebiscito, foi menos por gostar do
povo e da liberdade do que por duas
razões claras: ele não terá de deixar o
poder logo e ainda lhe resta tempo
de sobra para repetir a tentativa até
que o povo vote "corretamente".
O que quer que tenha melhorado
na Venezuela de Chávez é resultado
da alta do petróleo. A correlação entre petróleo e democracia é baixíssima e só pouquíssimos países que o têm, porque o descobriram quando
já dispunham de instituições sólidas
(a Noruega, o Reino Unido), conseguiram não se converter em tiranias.
A regra geral é a de que fontes semelhantes de riqueza sejam usadas por
aqueles que as monopolizam, primeiro, para comprar votos e, depois,
para comprar o direito de votar.
Desde pelo menos Luis Napoleão,
que, em meados do século 19, chegou ao poder por via eleitoral e, logo
depois, dando um golpe, sagrou-se
imperador, são conhecidas as técnicas que permitem alcançar o poder
despótico através da perversão interna da democracia. Não há, portanto, novidade alguma nos métodos de Chávez. De resto, o próprio
Chávez deve se assemelhar, e muito,
à imagem que projeta, a de um machão inseguro que perde o rebolado
ao ser desafiado em seus termos. É
bem provável, assim, que tenha sido
a humilhante frase do rei da Espanha, quando lhe disse "Por que você
não cala a boca?" (a segunda do singular em castelhano, naquelas circunstâncias, era quase um desacato), que lhe custou os votos do plebiscito.
Seja como for, o que mais surpreende, todavia, não é que gente
adulta, que analistas e comentaristas políticos profissionais ignorem
os fatos mais evidentes do governo
Chávez, que não prestem atenção ao
que ele mesmo diz nem comparem
tudo com tantas outras histórias já
repetidas como farsas de todos os tipos. O que espanta mesmo é que nenhum deles, após olhar por alguns
minutos uma foto sua, conclua o óbvio, a saber, que o venezuelano, com
seu blábláblá sobre o "socialismo do
século 21" e outras bobagens, não
passa de uma figura cômica, um tiranete de bolero, mas nem por isso
menos perigoso.
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