São Paulo, segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

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NELSON ASCHER

Está na cara


O próprio Chávez deve se assemelhar, e muito, à imagem que projeta, a de um machão inseguro

TEMPOS atrás eu fazia de carro, diariamente, o mesmo percurso e parava sempre, cerca de um minuto e meio, diante do mesmo semáforo. No primeiro semestre de 1989 havia, naquela esquina, um grande outdoor com a foto de um candidato às eleições presidenciais. Eu lera a seu respeito o que havia para se ler, ouvira suas entrevistas, discutira com amigos e assim por diante. Nada, porém, me deu a impressão de conhecê-lo melhor do que aquele momento diário de face a face com sua imagem.
Diz-se que, chegadas a determinada idade, as pessoas assumem o aspecto, o rosto que merecem. Em alguns casos, por mais expansivos, generosos e aparentemente normais que sejam os sorrisos, a cara merecida transparece mais cedo ao olhar experiente ou apenas insistente.
Como passei a maior parte do segundo semestre daquele ano na Europa Centro-Oriental, acompanhando-lhe os vertiginosos desdobramentos políticos que haviam me colhido de surpresa, eu me esquecera daquele sorriso forçado, daquele instantâneo que parecia ter sido inúmeras vezes repetido de modo a flagrar não um momento de naturalidade, mas um raro lapso de autocontrole. E tão pasmo quanto me deixara o desmoronar do Muro de Berlim, deixou-me, ao regressar, a constatação de que aquele era o rosto de nosso futuro presidente: Fernando Collor de Mello.
Nada, hoje em dia, separa tão nitidamente a esquerda da não-esquerda como a atitude de quem está sendo testado diante de Hugo Chávez. O teste consiste menos em aprovar ou desaprovar suas iniciativas políticas do que simpatizar ou antipatizar com sua imagem. E, no entanto, inclusive em termos de aparência, seria difícil encontrar alguém que mais se aproxime de um arquétipo clássico, o do gorila latino-americano. Se a Venezuela é, como insistem seus admiradores, um país democrático e ele, um democrata exemplar, então há decerto algo de profundamente errado com os modelos que prevalecem na Europa Ocidental, na América do Norte e no Brasil.
Mas, também, o que é a democracia, certo? Todos os regimes comunistas insistiam em se chamar de democráticos ("democracias populares") e, quanto a aceitar resultados desfavoráveis de referendos e votações, tanto Collor como Augusto Pinochet foram mais longe, concordando em abrir mão do poder, algo que o venezuelano ainda não fez, nem consta que o tirano chileno tivesse comparado a vitória de seus opositores à matéria fecal. Se Chávez acatou os resultados do recente plebiscito, foi menos por gostar do povo e da liberdade do que por duas razões claras: ele não terá de deixar o poder logo e ainda lhe resta tempo de sobra para repetir a tentativa até que o povo vote "corretamente".
O que quer que tenha melhorado na Venezuela de Chávez é resultado da alta do petróleo. A correlação entre petróleo e democracia é baixíssima e só pouquíssimos países que o têm, porque o descobriram quando já dispunham de instituições sólidas (a Noruega, o Reino Unido), conseguiram não se converter em tiranias. A regra geral é a de que fontes semelhantes de riqueza sejam usadas por aqueles que as monopolizam, primeiro, para comprar votos e, depois, para comprar o direito de votar.
Desde pelo menos Luis Napoleão, que, em meados do século 19, chegou ao poder por via eleitoral e, logo depois, dando um golpe, sagrou-se imperador, são conhecidas as técnicas que permitem alcançar o poder despótico através da perversão interna da democracia. Não há, portanto, novidade alguma nos métodos de Chávez. De resto, o próprio Chávez deve se assemelhar, e muito, à imagem que projeta, a de um machão inseguro que perde o rebolado ao ser desafiado em seus termos. É bem provável, assim, que tenha sido a humilhante frase do rei da Espanha, quando lhe disse "Por que você não cala a boca?" (a segunda do singular em castelhano, naquelas circunstâncias, era quase um desacato), que lhe custou os votos do plebiscito.
Seja como for, o que mais surpreende, todavia, não é que gente adulta, que analistas e comentaristas políticos profissionais ignorem os fatos mais evidentes do governo Chávez, que não prestem atenção ao que ele mesmo diz nem comparem tudo com tantas outras histórias já repetidas como farsas de todos os tipos. O que espanta mesmo é que nenhum deles, após olhar por alguns minutos uma foto sua, conclua o óbvio, a saber, que o venezuelano, com seu blábláblá sobre o "socialismo do século 21" e outras bobagens, não passa de uma figura cômica, um tiranete de bolero, mas nem por isso menos perigoso.


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