São Paulo, quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

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NINA HORTA

Formigas de comer


As formiguinhas não me pareceram estranhas, nem a textura nem nada. Sem drama. São assim uns minibuquês de tempero


GOSTEI DO jantar. Para falar a verdade não estava pronta para ir. Dia cansativo, calor, trânsito e para culminar comer formigas...
O convite era da Mara Salles, do Tordesilhas. Ela trouxe dona Brazi, uma índia baré, de São Miguel da Cachoeira, do Amazonas, que começou a fazer sucesso com sua culinária já na sua terra e tem nos visitado para conversas, aulas e, agora, um jantar típico.
Que corajosa a dona Brazi!
E a Mara também. Já pensou na trabalheira de se mandar para aqueles calores infernais, a umidade pesando nos ombros como se fosse a mão de Deus, absorver os ingredientes, imaginar como ficariam na mesa paulista, combinar a traquitana toda que viria lá na mala da dona Brazi, estilizar o não estilizável, gelar o que é morno, amaciar farinhas, inventar farofas...
Quando começam essas buscas por comidas brasileiras travo um pouco. Já passei tão animada por tantas delas... Já colhi jambu na calçada da minha casa, já trouxe mandiocas do sítio para usar as folhas, redescobri a Amazônia, falei em guará e guariba, em piranha e peixe-boi, tucunaré, pupunhas, encomendei cuias, fiz tucupi, usei brinco de pena, fugi a léguas do cupuaçu.
Depois, novidadeiros que somos, sem possibilidade de comprar as farinhas, os meles das abelhas sem ferrão, a bochecha da queixada, o peixe fresco pingando de rio, isso é, sem fornecedores, vamos esquecendo devagar e começamos a balbuciar tapas e espumas, num enlevo grande por sereias de sonoras castanholas. As flautas, os cocares vão se tornando um sonho bom do qual saltamos antes de internizá-lo. Qual a solução deste problema? Se a produção é pouca não chega às mesas, se é grande atrapalha a cultura do índio. Nó cego.
Mas chega. É a hora da formiga. E acho que desta vez vai. Não só por nossa causa, por nosso interesse, mas às custas de muita gente esforçada. E, principalmente, por causa dos próprios índios que também estão se descobrindo como índios, que já não se envergonham de papar sua formiguinha e de dançar aquelas danças tum-pam-tum-pam, mexendo os pés devagar.
Cheios de autoestima. Querem voltar a ser índios de verdade. Estão se gostando e estão na moda. Aqui e alhures.
Chegou a nossa vez, depois de quase todas as comidas do mundo se esgotarem. Acordamos de novo com o chibé da Mara. Acho que até um francês de nariz empinado iria gostar daquela aguinha gelada, refrescante, muito gelada mesmo, com cheiro de mato, de igarapé ao luar, de Ceci e Peri ao coentro com farinha ovinha. As coisas da Amazônia são antes de tudo cheirosas, dão a volta ao cérebro, embebedam e só se volta do surto com o ardido da pimenta que tira o fôlego. O chibé é um gaspacho mais gostoso, um missoshiro finíssimo e de uma simplicidade a toda a prova.
A meio caminho da crônica não posso perder a chance de vender uns livros e uma revista, por favor. Para ver pulsar Marajó e Belém leiam Dalcidio Jurandir, este autor paraense que só fui descobrir depois de velha e me encantei totalmente. A editora Cejup está lançando seus livros dentro de uma coleção que se chama "Extremo Norte". Comecem com "Chove nos Campos de Cachoeira", "Marajó", "Três Casas e Um Rio", "Belém do Grão Pará". Tem mais nove. Lembrem-se, sebos têm o Dalcidio, também.
Last but not least, a revista "Pororoca". De arrasar!
www.revistapororoca.com.br. Ao jantar da Mara. As formiguinhas não me pareceram estranhas, nem a textura nem nada. Sem drama. São assim uns minibuquês de tempero, sabem erva-cidreira, gengibre e formiga.
Eficientes. Agora, sim, vamos acabar de vez com a saúva. Sem esquecer a banana-ouro. A Mara cozinhou com casca, levou ao forno para dar um tom queimado, abriu como um veleiro de brinquedo e pôs dentro uma bola pequena de sorvete. E aqui em casa, dependendo da pescaria de rio, vai ter todo dia quinhampira, que é um caldo de peixe fragrante de pimenta de cheiro. Bom demais.

ninahorta@uol.com.br

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