São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 1997.

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"O Tradutor Cleptomaníaco" traz de volta Dezsö Kosztolányi

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

A norma básica para pronunciar palavras em húngaro é pôr o acento sempre na primeira sílaba. Isso não ajuda muito quando se tem pela frente um nome como Dezsö Kosztolányi. Mas não deixe que isso sirva para desencorajá-lo: porque o autor de "O Tradutor Cleptomaníaco" é um dos maiores dos menores, num século de tanta grande literatura. É um memorável pequeno artesão de fábulas do absurdo, que é outro nome para Hungria, que é outro nome para qualquer lugar.
Alguns lugares são mais qualquer lugar do que outros e a Europa do Leste tem um talento especial para isso, que não é de hoje. Conhecido por seus poemas pré-modernistas, na esfera de contemporâneos como Rilke, Hoffmansthal e Stefan George, Kostolányi foi também autor de três romances (mais ou menos esquecidos) e inumeráveis traduções (inesquecíveis para os húngaros) de Baudelaire, Rilke, poesia oriental e do "Cemitério Marinho" de Paul Valéry, entre outras coisas.
Sua fama, porém, vem acima de tudo dos livros de contos e, em especial, das histórias do seu alter ego Kornél Esti, um tipo boêmio, vivido, cético, cheio de ironia e auto-ironia, rico de aventuras de mesa de bar e autor de monólogos encantatórios, verdadeiras proezas de sarcasmo e de sabedoria.
São 13 dessas histórias, recolhidas de livros diversos, que chegam agora ao Brasil, em tradução esmerada de Ladislao Szabo. O livro integra a coleção Leste, da editora 34, um dos projetos mais notáveis nestes tempos de vacas magras, como são todos os tempos.
Aqui está a história do tradutor cleptomaníaco propriamente dito, homem votado ao furto com tal dedicação que era capaz de roubar personagens de livro (" `Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira recheada e atirou a quantia pedida, 1.500 libras...' Isso foi interpretado da seguinte forma pelo tradutor húngaro: `Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira e atirou a quantia pedida, 150 libras...'").
No extremo oposto, vêm as aventuras do homem que precisava e não conseguia se desfazer da fortuna, destino difícil e raro, ao que parece, na Hungria.
Há um conto sobre o fabricante de piteiras que desapareceu, caso típico da região: "Os franceses desaparecem à inglesa, os ingleses à francesa... Se alguém, por falta de emprego e trabalho, se cansa de jejuar e resolve deixar a família, e as alegrias pertinentes a ela, e depois com cinco ou seis quilos de pedra passa do peitoril da ponte diretamente para o Danúbio, ou salta de cabeça do quinto andar para o meio do pátio, então esse desapareceu à húngara".
Outros desaparecidos, menos radicais, são criaturas de mau agouro, que vivem uma vida dupla, cidadãos deste e doutro mundo. "Ainda estão, mas já não são", fenômeno mais comum do que pode parecer.
O reverso da moeda é treinar os semelhantes "gradualmente, cuidadosamente, para o fato de que estamos vivos", o que exige esforço especial para os poetas.
Kostolányi, de sua parte, ressurge tardiamente, em novo contexto, depois dos esforços de Paulo Rónai, na "Antologia do Conto Húngaro" (Artenova) e dos "Contos Húngaros" (Edusp). Cabe a nós dar vida, agora, mais uma vez, ao desaparecido.
"Como se deve mentir" é um dos temas para meditação de Kornél Esti. Só o inacreditável é acreditado, conclui, com acento aristotélico. Já a Hungria, para os leitores de Kostolányi, é verdadeira e inverossímil. O que só faz redobrar, para o escritor, a dificuldade e a responsabilidade de escrever.
Entre verdades de mentira e mentiras de verdade, ele vai nos ensinando o papel de um leitor.
Como acontece muitas vezes com a literatura do entre-guerras, "O Presidente", o mais longo dos contos do livro, soa hoje como sátira involuntariamente profética (e um tanto ingênua) à cultura alemã, que tem sobre a cabeça "um céu estrelado e o universo moral".
A medicina alemã arranca elogios de Esti: "Frequentemente dizia comigo mesmo que só entre os alemães quero ficar doente e morrer. Mas, para viver, prefiro outro lugar: minha casa e, em férias, a França". Seu autor teve a sorte relativa de morrer na Hungria, em 1936, alguns anos depois de compor essa história, que é também uma louvação definitiva a todos os que dormem em conferências, aulas e conselhos universitários.
"Só tem interesse e conteúdo o que tem forma", escreve. Mas a verdadeira ordem é a desordem, diz numa frase que serve de moto para sua cuidadosa estética.
Entre o "inacreditável e o sobrenatural" que fazem o dia-a-dia de Kornél Esti e seus amigos, entre o "morto no espelho" e o espelho de todos esses mortos e mortos-vivos, as 13 histórias tecem um panorama de absurdos mais que verossímeis. São miniaturas de enormidades, que ele nos ensina a reconhecer e a resistir, na medida do possível, com malícia, coragem e uma enorme dose de humor.

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