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"O Tradutor Cleptomaníaco"
traz de volta Dezsö Kosztolányi
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
A norma básica para pronunciar
palavras em húngaro é pôr o acento sempre na primeira sílaba. Isso
não ajuda muito quando se tem
pela frente um nome como Dezsö
Kosztolányi. Mas não deixe que isso sirva para desencorajá-lo: porque o autor de "O Tradutor Cleptomaníaco" é um dos maiores dos
menores, num século de tanta
grande literatura. É um memorável pequeno artesão de fábulas do
absurdo, que é outro nome para
Hungria, que é outro nome para
qualquer lugar.
Alguns lugares são mais qualquer lugar do que outros e a Europa do Leste tem um talento especial para isso, que não é de hoje.
Conhecido por seus poemas
pré-modernistas, na esfera de contemporâneos como Rilke, Hoffmansthal e Stefan George, Kostolányi foi também autor de três romances (mais ou menos esquecidos) e inumeráveis traduções
(inesquecíveis para os húngaros)
de Baudelaire, Rilke, poesia oriental e do "Cemitério Marinho" de
Paul Valéry, entre outras coisas.
Sua fama, porém, vem acima de
tudo dos livros de contos e, em especial, das histórias do seu alter
ego Kornél Esti, um tipo boêmio,
vivido, cético, cheio de ironia e auto-ironia, rico de aventuras de mesa de bar e autor de monólogos encantatórios, verdadeiras proezas
de sarcasmo e de sabedoria.
São 13 dessas histórias, recolhidas de livros diversos, que chegam
agora ao Brasil, em tradução esmerada de Ladislao Szabo. O livro
integra a coleção Leste, da editora
34, um dos projetos mais notáveis
nestes tempos de vacas magras,
como são todos os tempos.
Aqui está a história do tradutor
cleptomaníaco propriamente dito,
homem votado ao furto com tal
dedicação que era capaz de roubar
personagens de livro (" `Com um
sorriso irônico, o conde Vitsislav
abriu sua carteira recheada e atirou a quantia pedida, 1.500 libras...' Isso foi interpretado da seguinte forma pelo tradutor húngaro: `Com um sorriso irônico, o
conde Vitsislav abriu sua carteira e
atirou a quantia pedida, 150 libras...'").
No extremo oposto, vêm as
aventuras do homem que precisava e não conseguia se desfazer da
fortuna, destino difícil e raro, ao
que parece, na Hungria.
Há um conto sobre o fabricante
de piteiras que desapareceu, caso
típico da região: "Os franceses desaparecem à inglesa, os ingleses à
francesa... Se alguém, por falta de
emprego e trabalho, se cansa de jejuar e resolve deixar a família, e as
alegrias pertinentes a ela, e depois
com cinco ou seis quilos de pedra
passa do peitoril da ponte diretamente para o Danúbio, ou salta de
cabeça do quinto andar para o
meio do pátio, então esse desapareceu à húngara".
Outros desaparecidos, menos
radicais, são criaturas de mau
agouro, que vivem uma vida dupla, cidadãos deste e doutro mundo. "Ainda estão, mas já não
são", fenômeno mais comum do
que pode parecer.
O reverso da moeda é treinar os
semelhantes "gradualmente, cuidadosamente, para o fato de que
estamos vivos", o que exige esforço especial para os poetas.
Kostolányi, de sua parte, ressurge tardiamente, em novo contexto, depois dos esforços de Paulo
Rónai, na "Antologia do Conto
Húngaro" (Artenova) e dos
"Contos Húngaros" (Edusp). Cabe a nós dar vida, agora, mais uma
vez, ao desaparecido.
"Como se deve mentir" é um
dos temas para meditação de Kornél Esti. Só o inacreditável é acreditado, conclui, com acento aristotélico. Já a Hungria, para os leitores de Kostolányi, é verdadeira e
inverossímil. O que só faz redobrar, para o escritor, a dificuldade
e a responsabilidade de escrever.
Entre verdades de mentira e
mentiras de verdade, ele vai nos
ensinando o papel de um leitor.
Como acontece muitas vezes
com a literatura do entre-guerras,
"O Presidente", o mais longo dos
contos do livro, soa hoje como sátira involuntariamente profética (e
um tanto ingênua) à cultura alemã, que tem sobre a cabeça "um
céu estrelado e o universo moral".
A medicina alemã arranca elogios de Esti: "Frequentemente dizia comigo mesmo que só entre os
alemães quero ficar doente e morrer. Mas, para viver, prefiro outro
lugar: minha casa e, em férias, a
França". Seu autor teve a sorte relativa de morrer na Hungria, em
1936, alguns anos depois de compor essa história, que é também
uma louvação definitiva a todos os
que dormem em conferências, aulas e conselhos universitários.
"Só tem interesse e conteúdo o
que tem forma", escreve. Mas a
verdadeira ordem é a desordem,
diz numa frase que serve de moto
para sua cuidadosa estética.
Entre o "inacreditável e o sobrenatural" que fazem o dia-a-dia de
Kornél Esti e seus amigos, entre o
"morto no espelho" e o espelho
de todos esses mortos e mortos-vivos, as 13 histórias tecem um panorama de absurdos mais que verossímeis. São miniaturas de enormidades, que ele nos ensina a reconhecer e a resistir, na medida do
possível, com malícia, coragem e
uma enorme dose de humor.
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