São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Produções hollywoodianas superam análises políticas e sociais

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

O que é que "Os Flintstones", "Os Jetsons", "Os Monstros", "A Família Addams" e "Perdidos no Espaço" têm em comum? São todos seriados nos quais o protagonista é não um indivíduo, mas uma família. Em cada caso, o que se vê é uma família que se apresenta como tipicamente americana num contexto onde as complexidades internas contam menos do que sua interação com o resto do(s) mundo(s).
Quem, no entanto, é que consegue enumerar quais são as séries ou filmes europeus com uma estrutura semelhante? Limitemo-nos à França, país que se orgulha de ser uma exceção em face do modelo americano e cuja indústria cultural pretende às vezes rivalizar com a dos EUA. Embora sua produção seja volumosa, raramente ocorre que ela nos apresente uma família francesa típica: as tramas mais corriqueiras envolvem problemas existenciais, questões amorosas, adultério etc.
Num filme sobre os pais, os filhos não costumam aparecer, e vice-versa. Quando pais e filhos estão juntos, pode-se apostar que o assunto é a incompreensão, o conflito que os contrapõe.
Não é difícil a partir desse contraste concluir que, enquanto a família americana média funciona, a francesa está em crise. Ou, quem sabe, a conclusão seja o contrário: é a família francesa que está em ordem e pode acompanhar no cinema aquilo que não presencia em casa, enquanto a americana precisa de modelos ficcionais que a ajudem a se corrigir. E se a produção reflete apenas o gosto local ou tradições narrativas de cada país sem ter muita relação com qualquer realidade empírica?
Outra comparação que praticamente implora para ser feita é a seguinte: inúmeras tramas americanas se desenrolam no local de trabalho; quanto às francesas, praticamente nenhuma. Os únicos personagens franceses cuja profissão parece importar são (se descontarmos detetives e bandidos) os intelectuais. É provável que num só ano a França filme mais histórias cujo herói é um cineasta do que Hollywood no correr de quase um século. Quem deduzisse daí que a cultura francesa dá menos importância à esfera do trabalho do que a norte-americana não estaria errando o alvo.
Há um tipo de argumentação política/cinematográfica que consiste em escolher a dedo um filme, extrair descontextualizadamente alguns elementos de sua trama e, em seguida, usá-lo como ilustração, meio como prova, tanto mais irrefutável por ser oblíqua, do caráter nacional de um país.
Habitualmente é da produção hollywoodiana que se lança mão para demonstrar tal ou qual tese acerca dos Estados Unidos e, já que seu gênero nacional por excelência é o faroeste, não surpreende que, pouco importa o que façam ou deixem de fazer, os americanos sejam sempre chamados de cowboys, algo tão óbvio, afinal, quanto evocar o cangaço quando se discute o Brasil.
Que se use um filme como metáfora pertence à ordem natural das coisas e das argumentações, mas a menção aos filmes de ação como se fossem a quintessência do caráter violento dos americanos já se transformou num vício.
E, como o cinema europeu ocupa outros nichos, a imagem que se projeta é a de continente pacífico, uma imagem que nada tem a ver com sua realidade histórica.
Mesmo o mais esquemático produto de Hollywood supera, em termos de nuança ou mesmo profundidade psicológica e qualidade estética, qualquer uma dessas supostas análises. Pensando bem, comparado a elas, o personagem "Rambo" é definitivamente uma criação shakespeariana.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Livro/lançamento - "É difícil encontrar um homem bom": O'Connor oferece modelo de narrativa
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.