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RODAPÉ
Produções hollywoodianas superam análises políticas e sociais
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
O que é que "Os Flintstones",
"Os Jetsons", "Os Monstros", "A Família Addams" e
"Perdidos no Espaço" têm em comum? São todos seriados nos
quais o protagonista é não um indivíduo, mas uma família. Em cada caso, o que se vê é uma família
que se apresenta como tipicamente americana num contexto
onde as complexidades internas
contam menos do que sua interação com o resto do(s) mundo(s).
Quem, no entanto, é que consegue enumerar quais são as séries
ou filmes europeus com uma estrutura semelhante? Limitemo-nos à França, país que se orgulha
de ser uma exceção em face do
modelo americano e cuja indústria cultural pretende às vezes rivalizar com a dos EUA. Embora
sua produção seja volumosa, raramente ocorre que ela nos apresente uma família francesa típica:
as tramas mais corriqueiras envolvem problemas existenciais,
questões amorosas, adultério etc.
Num filme sobre os pais, os filhos não costumam aparecer, e vice-versa. Quando pais e filhos estão juntos, pode-se apostar que o
assunto é a incompreensão, o
conflito que os contrapõe.
Não é difícil a partir desse contraste concluir que, enquanto a família americana média funciona,
a francesa está em crise. Ou, quem
sabe, a conclusão seja o contrário:
é a família francesa que está em
ordem e pode acompanhar no cinema aquilo que não presencia
em casa, enquanto a americana
precisa de modelos ficcionais que
a ajudem a se corrigir. E se a produção reflete apenas o gosto local
ou tradições narrativas de cada
país sem ter muita relação com
qualquer realidade empírica?
Outra comparação que praticamente implora para ser feita é a
seguinte: inúmeras tramas americanas se desenrolam no local de
trabalho; quanto às francesas,
praticamente nenhuma. Os únicos personagens franceses cuja
profissão parece importar são (se
descontarmos detetives e bandidos) os intelectuais. É provável
que num só ano a França filme
mais histórias cujo herói é um cineasta do que Hollywood no correr de quase um século. Quem deduzisse daí que a cultura francesa
dá menos importância à esfera do
trabalho do que a norte-americana não estaria errando o alvo.
Há um tipo de argumentação
política/cinematográfica que consiste em escolher a dedo um filme,
extrair descontextualizadamente
alguns elementos de sua trama e,
em seguida, usá-lo como ilustração, meio como prova, tanto mais
irrefutável por ser oblíqua, do caráter nacional de um país.
Habitualmente é da produção
hollywoodiana que se lança mão
para demonstrar tal ou qual tese
acerca dos Estados Unidos e, já
que seu gênero nacional por excelência é o faroeste, não surpreende que, pouco importa o que façam ou deixem de fazer, os americanos sejam sempre chamados de
cowboys, algo tão óbvio, afinal,
quanto evocar o cangaço quando
se discute o Brasil.
Que se use um filme como metáfora pertence à ordem natural
das coisas e das argumentações,
mas a menção aos filmes de ação
como se fossem a quintessência
do caráter violento dos americanos já se transformou num vício.
E, como o cinema europeu ocupa outros nichos, a imagem que se
projeta é a de continente pacífico,
uma imagem que nada tem a ver
com sua realidade histórica.
Mesmo o mais esquemático
produto de Hollywood supera,
em termos de nuança ou mesmo
profundidade psicológica e qualidade estética, qualquer uma dessas supostas análises. Pensando
bem, comparado a elas, o personagem "Rambo" é definitivamente uma criação shakespeariana.
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