|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O dramaturgo e cineasta David Mamet analisa a mania americana de dar apelidos às coisas
Códigos secretos
DAVID MAMET
ESPECIAL PARA O "THREEPENNY REVIEW"
Nós, americanos, adoramos
apelidos e siglas. Acho isso encantador.
Meu outro povo, os judeus,
também gosta. Maimônides, o sábio medieval, era, em hebraico,
Rabbi Moishe Ben Maimon, ou
RamBam. Israel Bal Shem Tov é
conhecido como BESHT.
Nós, judeus, valorizamos o nome secreto das coisas, das coisas
que abraçamos. Assim como nós,
americanos. Damos aos que amamos um nome secreto. O Yankee
Clipper, o Sultão da Swat, Ray
BoomBoom Mancini, Elvis O Rei.
Também temos o hábito do temor reverente. Todos os novos
pais automática e universalmente
referem-se a "A Criança", "O Pequeno", "Aquela Pessoa". Isso é
uma tentativa de afastar ou dominar o mau-olhado, uma força tão
poderosa que não precisa ser chamada pelo nome.
De modo semelhante, nos referimos a nossos presidentes por
suas três iniciais. Isso é, ao mesmo
tempo, uma expressão de temor
respeitoso e uma tentativa de
neutralizar o terrível por meio da
familiaridade. Contaram-nos
(parece que é uma história inventada, mas é boa) que os republicanos, ao assumir a Casa Branca,
descobriram que a letra "w" havia
sido eliminada de todos os computadores. Mitologicamente, isso
é inestimável: os perdedores tentam enfraquecer o vitorioso eliminando sua característica mais
diferencial.
Todas as cerimônias de premiação hoje possuem um diminutivo
auto-atribuído. O Oscar, o Emmy
etc. As cerimônias ganharam importância, e outros grupos de premiação, cobiçando aquele poder,
inventaram seus próprios diminutivos, seus "w", no caso. Estes
não surgiram naturalmente, foram uma tentativa de atribuir-se
uma prerrogativa.
O grande sinal indicador da decadência urbana é a adulação dos
apelidos de ruas colocados nas
placas das mesmas.
State Street, "Aquela Grande
Rua"; Fifty-Second Street, "Swing
Street"- estes não representam o
menor problema. São expressões
espontâneas de afeto. Sua exibição, porém, é uma tentativa de
afirmar um poder que está diminuindo, ou já desapareceu.
O mesmo vale para os apelidos
carinhosos e a "conversa de bebê". Todos conhecemos o fenômeno da verdadeira briga conjugal, que começa com a ressurreição de apelidos há muito tempo
mortos: "Eu já o chamei assim, e
veja no que você se transformou".
Mary McCarthy escreve sobre o
"nome de bebê, o sinal mais seguro de um parceiro
incapaz daquele
último enlevo
conjugal".
A Bíblia nos diz
que o nome mais
secreto de Deus,
Shem Ha Meforesh, só poderia
ser pronunciado
pelo sumo sacerdote na tarde do
Yom Kippur. Somente ele entrava
no Santo dos Santos, e lá dizia o nome. Ele levava
uma corda amarrada ao tornozelo,
para que, caso
morresse no Santo dos Santos, fosse puxado para fora. Ninguém mais tinha permissão para entrar lá, é claro.
Por que não podiam entrar? O
Espírito de Deus habitava seu interior, e qualquer outra pessoa
que entrasse seria exterminada
por aquele poder. Por que eles temiam que o sumo sacerdote morresse? Ele poderia morrer se não
estivesse suficientemente limpo,
ou se pronunciasse o nome com
insuficiente santidade.
É a mesma coisa com o temível
nome "câncer". Não ousamos
pronunciá-lo. Entendemos o fenômeno do nome secreto. Tratamos esse nome com um espírito
melhor expresso pelos talmudistas, que disseram: "Não acreditamos em superstição. Por outro lado, é bom tomar cuidado".
Quem não tomaria cuidado
diante do inefável? Quem inverteria a aposta de Pascal, entraria no
Santo dos Santos e pronunciaria
O Nome? Alguém, talvez, mas não
você ou eu.
Nota: vemos isso com ênfase no
ramo do cinema.
Um ramo notavelmente sujeito
aos caprichos do
destino. Ninguém
que já fez um filme pensaria em
dizer no set de filmagem: "Que dia
lindo!" ou "Puxa,
as coisas estão indo bem...". Essa
pessoa é considerada não apenas
tola, mas uma
completa blasfema, e, como tal,
um pária.
Assim, parece
que nos lembramos do mandamento. Existem
certos nomes do
Senhor que podemos usar em
vão, mas os verdadeiros nomes
secretos e funcionais não usamos.
Sêneca nos adverte para tratar a
Fortuna como se realmente fosse
fazer conosco tudo o que está em
seu poder.
E qual de nós não teve a experiência do velho amigo a quem
dissemos, ou que nos disse: "Esta
amizade nunca vai terminar". E
sentimos aquele vento frio, cuja
premonição, é claro, se cumpre.
Não apenas não existem ateus nas
trincheiras, como, eu acredito,
não existem ateus em lugar algum. Apenas chamamos nossos
deuses de nomes diferentes. Na
verdade, a psicoterapia talvez seja
apenas a tentativa de descobrir esses nomes, e assim desafiar seu
poder.
Outra perversão do poder dos
nomes é, evidentemente, a publicidade. A maior conquista da publicidade e das relações públicas é
"tirar do papel" a idéia fabricada,
manipuladora, e fazê-la ser aceita
como parte do discurso. Por
exemplo, "Vamos tomar uma Coca" ou "Vou mandar por Sedex".
Lembro-me de um comercial de
televisão de 50 anos atrás -muitos de vocês também se lembram- em que um leiloeiro de
tabaco pronuncia sua maravilhosa litania, rápida e incompreensível, terminando com "Vendido".
Ou aquela voz de veludo no final
do anúncio de cigarros Chesterfield, lembrando-nos: "E são suaves...". Emblemas de uma época.
Cunhados para vender um produto, eles transcenderam a resistência consciente à manipulação e
tornaram-se parte da linguagem.
A publicidade é, ou tornou-se, a
tentativa de subverter, enfraquecer ou vencer a resistência consciente a uma idéia -implantar
uma idéia na vítima enquanto
oculta sua origem, e assim influenciar o comportamento.
A atribuição de apelidos, a aplicação de jargão, é uma ferramenta
conhecida para manipular o comportamento. Conhecemos o chefe
"carismático" que inventa nomes
"bonitinhos" e diferentes para
suas funcionárias. "Somente eu
sei e somente eu lhe atribuirei seu
nome." Essa é uma ferramenta
poderosa (e descortês). É uma arrogação de poder e um diagnóstico útil. Pois as que sorriem e inclinam a cabeça para ter suas orelhas acariciadas ao ouvir o novo
nome entregaram sua personalidade ao opressor; abandonaram
sua alma.
E o próprio mecanismo do temor ao nome secreto é empregado a serviço da opressão.
Isso pode ocorrer, como vimos,
na neurose, através da publicidade ou, numa mistura, no discurso
político. Se dizemos que "o governo" "baixou o nível de ameaça",
estamos necessariamente dizendo que o governo controla a
ameaça. Semanticamente, que
outro significado teria esse "código de cores"? Uma pessoa não pode agir em um dia de código vermelho de maneira diferente de
um dia de código laranja, e realmente ninguém chega a sugerir
que isso seja possível. Somos instados a ser "mais vigilantes", mas
a frase não pode ser posta em prática. Quem defende tudo, nada
defende, disse Napoleão.
Por isso, do ponto de vista semântico -isto é, avaliado pela
maneira como as palavras influem no pensamento, e portanto
na ação-, a proclamação do nível de ameaça é uma admissão de
que não há ameaça. Ou de que, se
existe ameaça, o governo é impotente para enfrentá-la. E que
aqueles que aceitam a reiteração
do nível de ameaça se submeteram, como a funcionária que aceita docilmente seu novo apelido, e
são consequentemente cúmplices
de sua própria manipulação, diariamente trocando a submissão
por uma redução da ansiedade e,
com o passar do tempo, por uma
auto-análise dolorosa e vergonhosa.
Um gênio de relações públicas
insistiu que a rede a cabo Warner
Brothers fosse chamada de WB.
Enquanto o fizermos, somos deles.
A construção em si não tem significado especial, é simplesmente
uma obediência, e como tal é na
verdade mais poderosa pela falta
de conteúdo. Quando essa obediência passa, como "americano
vendido", do consciente para o
automático, deixamos de reconhecer sua origem; torna-se hábito.
Um exemplo é a frase "armas de
destruição em massa". Essa fórmula é extensa, desajeitada e obviamente fabricada. Isso não quer
dizer que este ou
aquele ditador, ou
mesmo uma alma
bem-intencionada, não possua esses instrumentos.
Mas a fórmula em
si é difícil e, para o
ouvido americano, infeliz. E sua
repetição constante nos noticiários (você pode
notar que as pessoas nas ruas não
a usam com freqüência, e quando
usam é com desconforto), sua
própria estranheza, garante que a
frase, e portanto sua referência,
supere as fronteiras da consideração. Como a WB.
Pois nossa mente tende a criar
hábitos. E a alternativa, diante da
frase inaceitável, é esta: a oposição
constante, vigilante e impopular,
ou a aceitação habitual. Submetemo-nos para evitar o peso da hipocrisia.
De modo semelhante, a segurança doméstica [homeland security] é um conceito caro aos nossos corações. Vivemos em um
país maravilhoso, que por muitos
anos gozou de uma abençoada
ausência de ataques. A frase "segurança doméstica", no entanto,
é fabricada e soa falsa, pois os Estados Unidos têm muitos apelidos. Os soldados no Vietnã referiam-se ao país como "O Mundo"; podemos chamá-lo, carinhosamente, de "U.S. of A.". Muitos
de nós ficamos emocionados com
o policial da imigração que carimba nosso passaporte e diz "bem-vindo ao lar", um verdadeiro gesto de gentileza.
Os nomes são
poderosos.
Ninguém que se
envolveu em um
"relacionamento"
jamais se divertiu.
Podemos estar
flertando, seduzindo, fazendo sexo, namorando,
casados, saindo
juntos e assim por
diante. Mas qualquer coisa chamada de "relacionamento" deve
eventualmente
resultar em tristeza, pois os participantes não querem examinar e
nomear sua natureza.
O nexo do consciente e do inconsciente tem curta duração. A
mente inconsciente pode descartar o inútil, ou mesmo o desagradável. Quando sua reiteração é
acompanhada de compulsão, talvez estejamos destinados a sofrer.
Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Texto Anterior: "The Office" satiriza as mazelas de um escritório Próximo Texto: Saiba mais: Teatro e cinema são a base de David Mamet Índice
|