São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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O dramaturgo e cineasta David Mamet analisa a mania americana de dar apelidos às coisas

Códigos secretos

DAVID MAMET
ESPECIAL PARA O "THREEPENNY REVIEW"

Nós, americanos, adoramos apelidos e siglas. Acho isso encantador.
Meu outro povo, os judeus, também gosta. Maimônides, o sábio medieval, era, em hebraico, Rabbi Moishe Ben Maimon, ou RamBam. Israel Bal Shem Tov é conhecido como BESHT.
Nós, judeus, valorizamos o nome secreto das coisas, das coisas que abraçamos. Assim como nós, americanos. Damos aos que amamos um nome secreto. O Yankee Clipper, o Sultão da Swat, Ray BoomBoom Mancini, Elvis O Rei.
Também temos o hábito do temor reverente. Todos os novos pais automática e universalmente referem-se a "A Criança", "O Pequeno", "Aquela Pessoa". Isso é uma tentativa de afastar ou dominar o mau-olhado, uma força tão poderosa que não precisa ser chamada pelo nome.
De modo semelhante, nos referimos a nossos presidentes por suas três iniciais. Isso é, ao mesmo tempo, uma expressão de temor respeitoso e uma tentativa de neutralizar o terrível por meio da familiaridade. Contaram-nos (parece que é uma história inventada, mas é boa) que os republicanos, ao assumir a Casa Branca, descobriram que a letra "w" havia sido eliminada de todos os computadores. Mitologicamente, isso é inestimável: os perdedores tentam enfraquecer o vitorioso eliminando sua característica mais diferencial.
Todas as cerimônias de premiação hoje possuem um diminutivo auto-atribuído. O Oscar, o Emmy etc. As cerimônias ganharam importância, e outros grupos de premiação, cobiçando aquele poder, inventaram seus próprios diminutivos, seus "w", no caso. Estes não surgiram naturalmente, foram uma tentativa de atribuir-se uma prerrogativa.
O grande sinal indicador da decadência urbana é a adulação dos apelidos de ruas colocados nas placas das mesmas.
State Street, "Aquela Grande Rua"; Fifty-Second Street, "Swing Street"- estes não representam o menor problema. São expressões espontâneas de afeto. Sua exibição, porém, é uma tentativa de afirmar um poder que está diminuindo, ou já desapareceu.
O mesmo vale para os apelidos carinhosos e a "conversa de bebê". Todos conhecemos o fenômeno da verdadeira briga conjugal, que começa com a ressurreição de apelidos há muito tempo mortos: "Eu já o chamei assim, e veja no que você se transformou". Mary McCarthy escreve sobre o "nome de bebê, o sinal mais seguro de um parceiro incapaz daquele último enlevo conjugal".
A Bíblia nos diz que o nome mais secreto de Deus, Shem Ha Meforesh, só poderia ser pronunciado pelo sumo sacerdote na tarde do Yom Kippur. Somente ele entrava no Santo dos Santos, e lá dizia o nome. Ele levava uma corda amarrada ao tornozelo, para que, caso morresse no Santo dos Santos, fosse puxado para fora. Ninguém mais tinha permissão para entrar lá, é claro.
Por que não podiam entrar? O Espírito de Deus habitava seu interior, e qualquer outra pessoa que entrasse seria exterminada por aquele poder. Por que eles temiam que o sumo sacerdote morresse? Ele poderia morrer se não estivesse suficientemente limpo, ou se pronunciasse o nome com insuficiente santidade.
É a mesma coisa com o temível nome "câncer". Não ousamos pronunciá-lo. Entendemos o fenômeno do nome secreto. Tratamos esse nome com um espírito melhor expresso pelos talmudistas, que disseram: "Não acreditamos em superstição. Por outro lado, é bom tomar cuidado".
Quem não tomaria cuidado diante do inefável? Quem inverteria a aposta de Pascal, entraria no Santo dos Santos e pronunciaria O Nome? Alguém, talvez, mas não você ou eu.
Nota: vemos isso com ênfase no ramo do cinema.
Um ramo notavelmente sujeito aos caprichos do destino. Ninguém que já fez um filme pensaria em dizer no set de filmagem: "Que dia lindo!" ou "Puxa, as coisas estão indo bem...". Essa pessoa é considerada não apenas tola, mas uma completa blasfema, e, como tal, um pária.
Assim, parece que nos lembramos do mandamento. Existem certos nomes do Senhor que podemos usar em vão, mas os verdadeiros nomes secretos e funcionais não usamos.
Sêneca nos adverte para tratar a Fortuna como se realmente fosse fazer conosco tudo o que está em seu poder.
E qual de nós não teve a experiência do velho amigo a quem dissemos, ou que nos disse: "Esta amizade nunca vai terminar". E sentimos aquele vento frio, cuja premonição, é claro, se cumpre. Não apenas não existem ateus nas trincheiras, como, eu acredito, não existem ateus em lugar algum. Apenas chamamos nossos deuses de nomes diferentes. Na verdade, a psicoterapia talvez seja apenas a tentativa de descobrir esses nomes, e assim desafiar seu poder.
Outra perversão do poder dos nomes é, evidentemente, a publicidade. A maior conquista da publicidade e das relações públicas é "tirar do papel" a idéia fabricada, manipuladora, e fazê-la ser aceita como parte do discurso. Por exemplo, "Vamos tomar uma Coca" ou "Vou mandar por Sedex". Lembro-me de um comercial de televisão de 50 anos atrás -muitos de vocês também se lembram- em que um leiloeiro de tabaco pronuncia sua maravilhosa litania, rápida e incompreensível, terminando com "Vendido". Ou aquela voz de veludo no final do anúncio de cigarros Chesterfield, lembrando-nos: "E são suaves...". Emblemas de uma época. Cunhados para vender um produto, eles transcenderam a resistência consciente à manipulação e tornaram-se parte da linguagem. A publicidade é, ou tornou-se, a tentativa de subverter, enfraquecer ou vencer a resistência consciente a uma idéia -implantar uma idéia na vítima enquanto oculta sua origem, e assim influenciar o comportamento.
A atribuição de apelidos, a aplicação de jargão, é uma ferramenta conhecida para manipular o comportamento. Conhecemos o chefe "carismático" que inventa nomes "bonitinhos" e diferentes para suas funcionárias. "Somente eu sei e somente eu lhe atribuirei seu nome." Essa é uma ferramenta poderosa (e descortês). É uma arrogação de poder e um diagnóstico útil. Pois as que sorriem e inclinam a cabeça para ter suas orelhas acariciadas ao ouvir o novo nome entregaram sua personalidade ao opressor; abandonaram sua alma.
E o próprio mecanismo do temor ao nome secreto é empregado a serviço da opressão.
Isso pode ocorrer, como vimos, na neurose, através da publicidade ou, numa mistura, no discurso político. Se dizemos que "o governo" "baixou o nível de ameaça", estamos necessariamente dizendo que o governo controla a ameaça. Semanticamente, que outro significado teria esse "código de cores"? Uma pessoa não pode agir em um dia de código vermelho de maneira diferente de um dia de código laranja, e realmente ninguém chega a sugerir que isso seja possível. Somos instados a ser "mais vigilantes", mas a frase não pode ser posta em prática. Quem defende tudo, nada defende, disse Napoleão.
Por isso, do ponto de vista semântico -isto é, avaliado pela maneira como as palavras influem no pensamento, e portanto na ação-, a proclamação do nível de ameaça é uma admissão de que não há ameaça. Ou de que, se existe ameaça, o governo é impotente para enfrentá-la. E que aqueles que aceitam a reiteração do nível de ameaça se submeteram, como a funcionária que aceita docilmente seu novo apelido, e são consequentemente cúmplices de sua própria manipulação, diariamente trocando a submissão por uma redução da ansiedade e, com o passar do tempo, por uma auto-análise dolorosa e vergonhosa.
Um gênio de relações públicas insistiu que a rede a cabo Warner Brothers fosse chamada de WB. Enquanto o fizermos, somos deles.
A construção em si não tem significado especial, é simplesmente uma obediência, e como tal é na verdade mais poderosa pela falta de conteúdo. Quando essa obediência passa, como "americano vendido", do consciente para o automático, deixamos de reconhecer sua origem; torna-se hábito.
Um exemplo é a frase "armas de destruição em massa". Essa fórmula é extensa, desajeitada e obviamente fabricada. Isso não quer dizer que este ou aquele ditador, ou mesmo uma alma bem-intencionada, não possua esses instrumentos. Mas a fórmula em si é difícil e, para o ouvido americano, infeliz. E sua repetição constante nos noticiários (você pode notar que as pessoas nas ruas não a usam com freqüência, e quando usam é com desconforto), sua própria estranheza, garante que a frase, e portanto sua referência, supere as fronteiras da consideração. Como a WB.
Pois nossa mente tende a criar hábitos. E a alternativa, diante da frase inaceitável, é esta: a oposição constante, vigilante e impopular, ou a aceitação habitual. Submetemo-nos para evitar o peso da hipocrisia.
De modo semelhante, a segurança doméstica [homeland security] é um conceito caro aos nossos corações. Vivemos em um país maravilhoso, que por muitos anos gozou de uma abençoada ausência de ataques. A frase "segurança doméstica", no entanto, é fabricada e soa falsa, pois os Estados Unidos têm muitos apelidos. Os soldados no Vietnã referiam-se ao país como "O Mundo"; podemos chamá-lo, carinhosamente, de "U.S. of A.". Muitos de nós ficamos emocionados com o policial da imigração que carimba nosso passaporte e diz "bem-vindo ao lar", um verdadeiro gesto de gentileza.
Os nomes são poderosos.
Ninguém que se envolveu em um "relacionamento" jamais se divertiu. Podemos estar flertando, seduzindo, fazendo sexo, namorando, casados, saindo juntos e assim por diante. Mas qualquer coisa chamada de "relacionamento" deve eventualmente resultar em tristeza, pois os participantes não querem examinar e nomear sua natureza.
O nexo do consciente e do inconsciente tem curta duração. A mente inconsciente pode descartar o inútil, ou mesmo o desagradável. Quando sua reiteração é acompanhada de compulsão, talvez estejamos destinados a sofrer.


Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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