São Paulo, segunda, 11 de janeiro de 1999

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Pequenas recordações do ofício de repórter

FERNANDO GABEIRA

Colunista da Folha

² Sentado na sala em Brasília, vejo um prédio com toldo, penso como vim parar aqui e sinto, mais uma vez, a nostalgia do meu ofício de repórter.
Dessa vez, ela surgiu com a leitura de um debate filosófico. O tema não é muito novo. Defender idéias gerais e abstratas, válidas universalmente, ou descrever situações parciais, contextualizadas? O que é melhor? No auge da discussão, foi citado como exemplo de uma descrição parcial que teve um impacto maior do que idéias gerais o livro "Silent Spring", de Rachel Carson, uma espécie de clássico da ecologia.
Esse mesmo debate existe em psicologia, com os tipos criados por William James. Jung encontrou uma oposição semelhante também na teologia. Nas redações, em nossa linguagem própria, sabemos opor uma reportagem a um editorial e constatamos que, quase sempre, a descrição dos fatos tem um peso maior.
Voltando à trilha nostálgica, "Silent Spring" acionou minha saudade do ofício, ao ser mencionado no debate filosófico. Não porque tratava de ecologia ou porque era uma grande reportagem. Seu fascínio se deve também ao fato de apelar para os sentidos no próprio título: uma primavera silenciosa por causa da ausência dos pássaros, dizimados ou expulsos pelo uso intensivo de pesticidas.
Tive uma reação parecida quando li o livro "O Enigma da Volta", de V.S. Naipaul. O narrador andava pelos arredores de sua casa, no campo inglês, e descrevia todos os detalhes com uma força extraordinária, pois seus sentidos estavam aguçados. Não era um narrador desses que sabem tudo o que se passa no interior das pessoas, onisciente. Registrava o movimento dos vizinhos, descrevia seus gestos e roupa, quando muito tentava adivinhar o que se passava, como qualquer um de nós faz no cotidiano.
Quando os sentidos entram em cena, as descrições se fortalecem. Paradoxalmente, foram os estudos sobre o cérebro que valorizaram os sentidos. Nos livros populares, recomenda-se como exercício para a longevidade cerebral aguçar a sensibilidade para sentir os cheiros, ouvir os sons. Nas antologias mais intelectualizadas sobre a memória, há espaço para ensaios como os de Diane Ackerman sobre cheiro e memória, na literatura e também na mitologia.
Se voltasse hoje a ser repórter, já teria, pelo menos, um roteiro para renovar meu trabalho. A primeira grande revolução na imprensa brasileira foi ditada pelo próprio avanço econômico. Leitores apressados precisavam de textos rápidos, sintéticos, se possível com todas as informações principais no primeiro parágrafo. Os fatos prevaleciam sobre as opiniões, substantivos sobre adjetivos. Era um avanço, sob muitos aspectos.
Continuamos produzindo textos para pessoas apressadas e que querem tudo muito bem explicado, para reduzir seu esforço. Mais do que isso, fomos nos adaptando à idéia de que os leitores eram executivos. Aos poucos os textos pareciam informes empresariais. Simultaneamente, ensinamos nossa técnica para as empresas, que passaram a produzir suas notícias, como se fossem jornalistas se dirigindo ao público. A reportagem inspirou o release, que, por sua vez, aprendeu a se disfarçar e a conviver com com as notícias, como se fosse se idêntico a elas.
Os sentidos, o próprio faro do repórter, foram se embotando para que a aparência de neutralidade se impusesse e o texto emergisse como se fosse escrito pela máquina, despojado de odores, ruídos, colorações, com seu autor perfeitamente dissolvido na tinta e no papel.
Sei que muitos vão dizer: isso parece um manifesto do novo jornalismo, que aconteceu há muitos anos e já está também em seu declínio. Acontece que o chamado novo jornalismo era quase tão onipotente como o romance. Parecia saber de tudo; onde escasseavam os fatos, multiplicavam-se explicações subjetivas. O narrador de "O Enigma da Chegada" sabe buscar dados onde nosso torpor não consegue distingui-los.
É preciso fazer uma revolução jornalística para voltar a ser repórter? Nada disso. É só ganhar um novo tipo de atenção. "Silent Spring", o livro de Rachel Carson, impressionou muito mais do que abstratos discursos sobre a salvação do planeta.
Certas reportagens podem superar o trabalho de meses de mandato político, no qual idéias universais e abstratas transitam com grande facilidade.
Não desejo secretamente descartar um dos pólos desses dilema, o abstrato ou o concreto. Apenas tenho saudade de ser repórter, olhando o toldo amarelo tremular e sentindo o cheiro de terra molhada, anunciando uma dessas rapidíssimas chuvas de Brasília.



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