|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Pequenas recordações do ofício de repórter
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
²
Sentado na sala em Brasília,
vejo um prédio com toldo, penso
como vim parar aqui e sinto,
mais uma vez, a nostalgia do
meu ofício de repórter.
Dessa vez, ela surgiu com a
leitura de um debate filosófico.
O tema não é muito novo. Defender idéias gerais e abstratas,
válidas universalmente, ou descrever situações parciais, contextualizadas? O que é melhor?
No auge da discussão, foi citado
como exemplo de uma descrição parcial que teve um impacto maior do que idéias gerais o
livro "Silent Spring", de Rachel
Carson, uma espécie de clássico
da ecologia.
Esse mesmo debate existe em
psicologia, com os tipos criados
por William James. Jung encontrou uma oposição semelhante
também na teologia. Nas redações, em nossa linguagem própria, sabemos opor uma reportagem a um editorial e constatamos que, quase sempre, a descrição dos fatos tem um peso
maior.
Voltando à trilha nostálgica,
"Silent Spring" acionou minha
saudade do ofício, ao ser mencionado no debate filosófico.
Não porque tratava de ecologia
ou porque era uma grande reportagem. Seu fascínio se deve
também ao fato de apelar para
os sentidos no próprio título:
uma primavera silenciosa por
causa da ausência dos pássaros,
dizimados ou expulsos pelo uso
intensivo de pesticidas.
Tive uma reação parecida
quando li o livro "O Enigma da
Volta", de V.S. Naipaul. O narrador andava pelos arredores
de sua casa, no campo inglês, e
descrevia todos os detalhes com
uma força extraordinária, pois
seus sentidos estavam aguçados. Não era um narrador desses que sabem tudo o que se passa no interior das pessoas, onisciente. Registrava o movimento
dos vizinhos, descrevia seus gestos e roupa, quando muito tentava adivinhar o que se passava, como qualquer um de nós
faz no cotidiano.
Quando os sentidos entram
em cena, as descrições se fortalecem. Paradoxalmente, foram
os estudos sobre o cérebro que
valorizaram os sentidos. Nos livros populares, recomenda-se
como exercício para a longevidade cerebral aguçar a sensibilidade para sentir os cheiros,
ouvir os sons. Nas antologias
mais intelectualizadas sobre a
memória, há espaço para ensaios como os de Diane Ackerman sobre cheiro e memória, na
literatura e também na mitologia.
Se voltasse hoje a ser repórter,
já teria, pelo menos, um roteiro
para renovar meu trabalho. A
primeira grande revolução na
imprensa brasileira foi ditada
pelo próprio avanço econômico.
Leitores apressados precisavam
de textos rápidos, sintéticos, se
possível com todas as informações principais no primeiro parágrafo. Os fatos prevaleciam
sobre as opiniões, substantivos
sobre adjetivos. Era um avanço,
sob muitos aspectos.
Continuamos produzindo
textos para pessoas apressadas
e que querem tudo muito bem
explicado, para reduzir seu esforço. Mais do que isso, fomos
nos adaptando à idéia de que os
leitores eram executivos. Aos
poucos os textos pareciam informes empresariais. Simultaneamente, ensinamos nossa
técnica para as empresas, que
passaram a produzir suas notícias, como se fossem jornalistas
se dirigindo ao público. A reportagem inspirou o release,
que, por sua vez, aprendeu a se
disfarçar e a conviver com com
as notícias, como se fosse se
idêntico a elas.
Os sentidos, o próprio faro do
repórter, foram se embotando
para que a aparência de neutralidade se impusesse e o texto
emergisse como se fosse escrito
pela máquina, despojado de
odores, ruídos, colorações, com
seu autor perfeitamente dissolvido na tinta e no papel.
Sei que muitos vão dizer: isso
parece um manifesto do novo
jornalismo, que aconteceu há
muitos anos e já está também
em seu declínio. Acontece que o
chamado novo jornalismo era
quase tão onipotente como o romance. Parecia saber de tudo;
onde escasseavam os fatos, multiplicavam-se explicações subjetivas. O narrador de "O Enigma
da Chegada" sabe buscar dados
onde nosso torpor não consegue
distingui-los.
É preciso fazer uma revolução
jornalística para voltar a ser repórter? Nada disso. É só ganhar
um novo tipo de atenção. "Silent Spring", o livro de Rachel
Carson, impressionou muito
mais do que abstratos discursos
sobre a salvação do planeta.
Certas reportagens podem superar o trabalho de meses de
mandato político, no qual
idéias universais e abstratas
transitam com grande facilidade.
Não desejo secretamente descartar um dos pólos desses dilema, o abstrato ou o concreto.
Apenas tenho saudade de ser repórter, olhando o toldo amarelo
tremular e sentindo o cheiro de
terra molhada, anunciando
uma dessas rapidíssimas chuvas de Brasília.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|