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MÚSICA
Crítica/erudito/"In Tempus Praesens"
Mutter enriquece obra de compositora russa
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Não há atividade
mais nobre do que
recompor a integridade espiritual pela criação
de música." As palavras da
compositora russa Sofia Gubaidulina estão numa entrevista
de 1989 (revista "Oganok", nº
33), mas seguem iluminando
sua obra, que não é pequena e
ganha um acréscimo extraordinário com este concerto para
violino e orquestra, "In Tempus Praesens" (2007), recém-gravado por Anne-Sophie Mutter, com a Sinfônica de Londres
regida por Valery Gergiev.
Nascida em 1931, no Tartaristão (na ex-União Soviética,
hoje parte da Rússia), residente
na Alemanha desde 1992, Gubaidulina tornou-se por consenso um dos maiores nomes
da música contemporânea. Divide com Schnittke (1934-1998) a distinção de sucessor de
Shostakovich (1906-1975).
Mas, enquanto esses dois têm
uma ligação mais direta, seja
pelo tipo de construção musical, seja pelo seu caráter intelectual e emotivo, ela envereda
por outros caminhos.
Na música de Gubaidulina
(que será tema de um concerto
da Osesp neste semestre), não
há lugar para a expressão individual: tudo serve a uma espécie de voz suprema, que é de todos e não é de ninguém. Essa
dimensão mística da música se
instala desde os primeiros
compassos. Técnicas ocidentais avançadas se combinam
com desenhos melódicos da liturgia ortodoxa russa. Combinam-se também, muitas vezes,
com o uso de instrumentos raros do Cáucaso ou do folclore
asiático.
No caso desse concerto -seu
segundo, depois do antológico
"Offertorium" (1980), gravado
por Gidon Kremer-, o conjunto de timbres inclui um cravo e
um piano, que aparecem no
meio da gigantesca orquestra,
com direito a três tubas wagnerianas e seis percussionistas
(mas nenhum violino).
Bach como modelo
Serviu de inspiração inicial o
nome em comum da compositora e da solista: "Sofia", no
sentido que tem para a cristandade ortodoxa, sinônimo de
"conhecimento divino", fundação de tudo o que se dá. As duas
coisas -acervo de timbres e conhecimento essencial- são exploradas uma em relação à outra ao longo dos 32 minutos do
concerto, dividido em cinco
movimentos sem pausa.
Partindo do violino solo, em
cantilenas ascendentes, com
pequenas intervenções orquestrais, a música vai se abrindo
em leque, cada vez com mais
instrumentos. Que tudo termine, afinal, de novo na solista,
evanecendo sozinha num agudíssimo fá sustenido, não chega
a causar surpresa, mas nesse
ponto já não se está mais à espera de espetáculo: o mundo já
ficou para trás, e nós também.
A própria Gubaidulina fala
em J. S. Bach (1685-1750) como
seu maior modelo. Nada melhor que o disco inclua dois
concertos para violino e orquestra do mestre barroco, tocados e regidos por Mutter,
com os Trondheim Soloists.
Estranha, linda, paradoxal gravação: andamento e fluência da
música antiga, especialmente
na orquestra; vibrato e dinâmica do século 20 nos solos, sem
que haja propriamente desacerto.
O contraste joga a solista para a frente, não para trás, desse
outro "tempo presente" do passado. Para a frente no tempo e
para dentro dos afetos: tudo
aqui faz jus à arte de uma violinista para quem cada nota é conhecimento divino, na sua mais
sensual e presente encarnação.
IN TEMPUS PRAESENS
Artista: Anne-Sophie Mutter
Gravadora: Deutsche Grammophon
(importado)
Quanto: US$ 7.99 (R$ 17,89, mais taxas; www.amazon.com)
Avaliação: ótimo
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