São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

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MÚSICA

Crítica/erudito/"In Tempus Praesens"

Mutter enriquece obra de compositora russa

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Não há atividade mais nobre do que recompor a integridade espiritual pela criação de música." As palavras da compositora russa Sofia Gubaidulina estão numa entrevista de 1989 (revista "Oganok", nº 33), mas seguem iluminando sua obra, que não é pequena e ganha um acréscimo extraordinário com este concerto para violino e orquestra, "In Tempus Praesens" (2007), recém-gravado por Anne-Sophie Mutter, com a Sinfônica de Londres regida por Valery Gergiev. Nascida em 1931, no Tartaristão (na ex-União Soviética, hoje parte da Rússia), residente na Alemanha desde 1992, Gubaidulina tornou-se por consenso um dos maiores nomes da música contemporânea. Divide com Schnittke (1934-1998) a distinção de sucessor de Shostakovich (1906-1975).
Mas, enquanto esses dois têm uma ligação mais direta, seja pelo tipo de construção musical, seja pelo seu caráter intelectual e emotivo, ela envereda por outros caminhos. Na música de Gubaidulina (que será tema de um concerto da Osesp neste semestre), não há lugar para a expressão individual: tudo serve a uma espécie de voz suprema, que é de todos e não é de ninguém. Essa dimensão mística da música se instala desde os primeiros compassos. Técnicas ocidentais avançadas se combinam com desenhos melódicos da liturgia ortodoxa russa. Combinam-se também, muitas vezes, com o uso de instrumentos raros do Cáucaso ou do folclore asiático.
No caso desse concerto -seu segundo, depois do antológico "Offertorium" (1980), gravado por Gidon Kremer-, o conjunto de timbres inclui um cravo e um piano, que aparecem no meio da gigantesca orquestra, com direito a três tubas wagnerianas e seis percussionistas (mas nenhum violino).

Bach como modelo
Serviu de inspiração inicial o nome em comum da compositora e da solista: "Sofia", no sentido que tem para a cristandade ortodoxa, sinônimo de "conhecimento divino", fundação de tudo o que se dá. As duas coisas -acervo de timbres e conhecimento essencial- são exploradas uma em relação à outra ao longo dos 32 minutos do concerto, dividido em cinco movimentos sem pausa. Partindo do violino solo, em cantilenas ascendentes, com pequenas intervenções orquestrais, a música vai se abrindo em leque, cada vez com mais instrumentos. Que tudo termine, afinal, de novo na solista, evanecendo sozinha num agudíssimo fá sustenido, não chega a causar surpresa, mas nesse ponto já não se está mais à espera de espetáculo: o mundo já ficou para trás, e nós também.
A própria Gubaidulina fala em J. S. Bach (1685-1750) como seu maior modelo. Nada melhor que o disco inclua dois concertos para violino e orquestra do mestre barroco, tocados e regidos por Mutter, com os Trondheim Soloists. Estranha, linda, paradoxal gravação: andamento e fluência da música antiga, especialmente na orquestra; vibrato e dinâmica do século 20 nos solos, sem que haja propriamente desacerto. O contraste joga a solista para a frente, não para trás, desse outro "tempo presente" do passado. Para a frente no tempo e para dentro dos afetos: tudo aqui faz jus à arte de uma violinista para quem cada nota é conhecimento divino, na sua mais sensual e presente encarnação. IN TEMPUS PRAESENS

Artista: Anne-Sophie Mutter
Gravadora: Deutsche Grammophon (importado)
Quanto: US$ 7.99 (R$ 17,89, mais taxas; www.amazon.com)
Avaliação: ótimo



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