São Paulo, quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

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NINA HORTA

A velha


O dia chegava com o leiteiro, ela tomava banho e ficava sentada na varanda com cheiro limpo de limão


PARECIA BORBULHAR em calda rala na varanda branca. Limpinha, tratada, cheirosa, lúcida. Mas a casa não era dela e zumbia, tinha avesso. O calmante estava lá na prateleira das compotas, mas calmante não adiantava para bruxice. Caduca nada, como via no rosto das noras, ela adivinhava um tanto de coisas, adivinhara até a morte de Archangelo, coitado. E essa casa zumbia, sim, e ela se arrepiava toda com medos, presságios. Foi sempre desse jeito. As coisas não eram só coisas, eram mais, sempre existiram mais.
Queria dormir, o lenço no pescoço espetava, puxou com força, doeu na pele. Dava tanto medo, ninguém via, só ela tinha aquele olho grande, os pedaços de preto se descolavam em arrepios, se perdiam no branco, estatelados, como bruxas batendo nos vidros. Morcegos, asas recortadas de preto e nojo. Noite viscosa, preta, morcego voando no forro.
Que enjoada que ficava só de pensar naqueles morcegos com canelinhas finas. E mais enjoada ainda com o cheiro de doce. Poços de Caldas cheirava a compota. Compota de sidra, precisava pôr todas num saco de farinha, amarrar as bordas e dependurar no rego. Três dias de água passando, limpa, o amargo da sidra sai. Compota de manga, cortar em talhadas grossas, calda rala, as fatias escorregavam, sumarentas. Tossiu, tossiu, um cheiro de terebintina na casca. Pêssego verde, aferventar com a cinza do fogão que a penugem sai. O bom da goiaba é que se pode comer a casca. Ácida, fresca, até dói o queixo. Sempre tinha achado a cor da goiaba a mais bonita que tem. Doce de goiaba em prato fundo com leite gelado ou natas. Começou a sentir fome, mas fome de compota e não de mingau, nem de banana amassada com farinha branca de remédio.
Cabeceou de sono, mal-estar, dormiu um pouquinho e acordou de cabeça leve, escutou o trote dos cavalos, o cheiro de jasmim, calma amarela, a bulha dos passarinhos, fogo de lenha, cinza, toicinho, bafos de guaco. Passou a mão pelo rosto quase sem rugas, mas as mãos não eram as dela, tinham manchas grandes, veias altas, os tendões pareciam querer romper a pele, as unhas recurvas, e que força, podia até matar alguém, se quisesse.
O avesso era preto e o direito era branco, o dia chegava com o leiteiro, ela tomava banho e ficava sentada na varanda com cheiro limpo de limão. Limão do tempo do entrudo, faziam bolinhas de cera até tarde da noite e enchiam de água de limão e estouravam no corso.
A enfermeira amolava como uma sombra de anjo, preta vestida de branco. Tinha ódio da petulância daquelas negrinhas. Imagine, botar o nome de César no filho sem pai, o mesmo nome do filho dela, foi uma dificuldade no cartório mas trocou o nome. Ficou Octavio -ex-César por causa da menina. Por isso tinha feito uma cozinha pequena, só dela. Fazia seus sequilhos, tortas, com mãos brancas de farinha, assava as nozes fingidas, presuntinhos.
Ia tudo tão bem na varanda, até que o céu se enchia de urubus, lembravam o preto, o abafado, sem teto. Nas pontas brancas de suas asas, traziam confusão, agourentos, espiando, desejando. Que calor pegajoso, estava dentro do vidro de compota de figo verde, querendo sair, os figos se abriam em sementinhas, polpudos, o gosto de figo verde sufocava. Soluçou, com raiva de não conseguir se desembaraçar da calda quente. Poços de Caldas era uma panela de compota no sol. Na calçada, passeavam casais em lua de mel, tão desajeitados, muita perna, muito braço. Ela passeava na praça da igreja de são José, e Arthur tinha olhos castanhos cor de abelha, e riam tanto os olhos dele.

ninahorta@uol.com.br


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