UOL


São Paulo, terça-feira, 11 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Briga de marido e mulher

Fim de festa. Nem sábado, nem domingo. O meio do meio da noite. Uma 23 de Maio de dar inveja aos taxistas... mas o marido dirige com brutalidade. Muita pressa por nada. Do lado, a mulher finge que não é com ela. Nem reclama da buzina, das costuras, das freadas. Liga o rádio, aumenta. Música. O marido abaixa, muda de estação. Notícias. A mulher desliga.
O marido tira um cigarro amassado do bolso interno do paletó. Desentorta. Põe na boca. Ajeita. Fica balançando com aquilo ali. Como houvessem deixado de fumar juntos, a mulher lança-lhe um sorriso mole. É desprezo. Com gestos largos, o marido empurra o acendedor. Espera com o volante na outra mão. Não parece atento ao tráfego. A mulher bufa, checa o cinto e encolhe-se no banco. Quando aquele troço estala e pula no painel, o marido passa com a brasa dançando diante da mulher. Só então aproxima do cigarro. Espera ser observado. Nesse instante é que acende e traga com um prazer de dar inveja. Faz questão de soprar a fumaça por cima do pára-brisa, turvando a visão da mulher que já voltou a encarar o horizonte mais distante da zona sul. O marido chupa o cigarro até aparecer uma ponta rubra, comprida, obscena. Leva-o dessa maneira até sentir o gosto amargo da combustão do filtro. A mulher respira profunda, pausada e suavemente. O marido aperta o cigarro no cinzeiro. Aperta mal. Sobe um filete de fumaça encardido. A mulher fecha o cinzeiro com um peteleco.
Ficam o resto de caminho nesse silêncio que não é piada. Ao aproximarem-se do prédio, o marido circula o quarteirão por duas vezes, procurando malandro, enquanto ouve a mulher martelar o assoalho com as sandálias de salto. Na garagem, ele conduz até a vaga mais esmagada. Aquela que a mulher odeia. Entre o elevador de serviço e as lixeiras. A mulher espera que o marido puxe o freio de mão e desligue o carro pra que as portas destravem. Parece que demora. A mulher abre de uma vez. Acerta a coluna de concreto, risca um vergão na lataria.
O marido desce e aciona o alarme enquanto a mulher segue esfregando as solas com os caquinhos do chão até o elevador. Quando o elevador aparece, a mulher levanta o pescoço, fica reparando nalguma coisa do teto e segurando a porta até que o marido entre. Ele passa direto. Chega a fazer vento. Então a mulher entra e deixa a porta encostar gemendo. Ninguém aperta o botão. Parece que demora. Só quando o marido vai acioná-lo é que a mulher habilita-se e toma-lhe a frente. É difícil descruzar os olhares que se teimam no caminho. Um andar... dois andares... três andares... O marido deixa o braço suado escorrer pelo revestimento de alumínio, fazendo um barulho arrepiado. A mulher estica-se toda e coloca-se junto da saída. Quatro andares... cinco andares... A cada andar que o elevador ganha, o marido dá uma batida com a aliança naquela plaquinha de lotação. Seis andares... sete andares... até o 15. Alguma coisa está prestes a explodir pelos narizes quando finalmente chegam.
A mulher sai na frente. O marido vai atrás. Enquanto a mulher vasculha a bolsa, o marido apanha sua chave e abre a porta do apartamento. Quando ela encontra o que procura, ele já andou um par de metros pelo corredor, jogou o relógio na mesa e entrou no banheiro. A mulher fecha a porta do hall; passa a chave, o pega-ladrão, um trinco. Lá dentro o marido urina fazendo barulho. A mulher surge a tempo de ver as gotículas rebaterem na privada, refletirem com as luminárias e garoarem pra fora. Ela chuta pra se livrar das sandálias, que rebatem na parede. Cai um pedaço de reboco. É pequeno.
O marido pisa nos calcanhares pra se soltar dos sapatos. Deixa-os desbeiçados no meio da passadeira, as meias derramadas por cima. A mulher senta-se na privada com as pernas abertas. Apanha um maço de papel higiênico e limpa o piso junto do vaso. Teatral. O marido só não assobia porque não sabe. Então escova os dentes. A mulher passa fio dental. Coisas minúsculas espirram no espelho que são obrigados à dividir. Os pescoços duros. Aquele silêncio berrando desesperado. A mulher dá as costas ao marido, mas aproxima-se dele. Para que ele desça o zíper. O marido usa as pontas dos dedos. Não consegue. Em seguida põe força. É muita. Acaba descosturando um bom pedaço. A mulher vira-se pra ver o estrago e acerta uma cotovelada na costela do marido. O marido quase perde a respiração. Toma fôlego, junta a mulher pelas alças do sutiã e dá-lhe uma bofetada. A mulher cobre o rosto, lambe os lábios. Não acha sangue. Finge que vai sair, volta-se e desfere-lhe uma joelhada no baixo ventre. O marido dobra-se; ergue-se e, aproveitando que a mulher virou, manda-lhe um pé na bunda. A mulher tropeça na direção do quarto e apoia-se na cômoda, espatifando bibelôs. Quando o marido se aproxima, ela puxa repentinamente o maleiro do guarda roupa, acertando-lhe o supercílio. Agora sai sangue e escorre e levanta um calombo. A mulher mal tem tempo de dar conta disso tudo e se proteger da travesseirada. É travesseiro, mas dói. E dá tontura. Depois o marido ainda apanha o travesseiro e joga-o pela janela. A mulher faz que vai pular junto, percebe que o travesseiro é dele; espera. Pega o despertador. Joga nele. O marido desvia-se, abaixa a cabeça, corre pra cima dela. A mulher ginga, ele tropeça no edredom e desaba sobre a cama. Por fim, a mulher atira-se sobre o marido... e têm a melhor noite de suas vidas.


Texto Anterior: Crítica: Paulo Francis segura a onda no "Manhattan"
Próximo Texto: Música: "Elas não evoluíram nada", diz Hermeto
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.