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FERNANDO BONASSI
Briga de marido e mulher
Fim de festa. Nem sábado,
nem domingo. O meio do
meio da noite. Uma 23 de Maio
de dar inveja aos taxistas... mas o
marido dirige com brutalidade.
Muita pressa por nada. Do lado, a
mulher finge que não é com ela.
Nem reclama da buzina, das costuras, das freadas. Liga o rádio,
aumenta. Música. O marido
abaixa, muda de estação. Notícias. A mulher desliga.
O marido tira um cigarro amassado do bolso interno do paletó.
Desentorta. Põe na boca. Ajeita.
Fica balançando com aquilo ali.
Como houvessem deixado de fumar juntos, a mulher lança-lhe
um sorriso mole. É desprezo. Com
gestos largos, o marido empurra o
acendedor. Espera com o volante
na outra mão. Não parece atento
ao tráfego. A mulher bufa, checa o
cinto e encolhe-se no banco.
Quando aquele troço estala e pula no painel, o marido passa com
a brasa dançando diante da mulher. Só então aproxima do cigarro. Espera ser observado. Nesse
instante é que acende e traga com
um prazer de dar inveja. Faz
questão de soprar a fumaça por
cima do pára-brisa, turvando a
visão da mulher que já voltou a
encarar o horizonte mais distante
da zona sul. O marido chupa o cigarro até aparecer uma ponta rubra, comprida, obscena. Leva-o
dessa maneira até sentir o gosto
amargo da combustão do filtro. A
mulher respira profunda, pausada e suavemente. O marido aperta o cigarro no cinzeiro. Aperta
mal. Sobe um filete de fumaça encardido. A mulher fecha o cinzeiro com um peteleco.
Ficam o resto de caminho nesse
silêncio que não é piada. Ao aproximarem-se do prédio, o marido
circula o quarteirão por duas vezes, procurando malandro, enquanto ouve a mulher martelar o
assoalho com as sandálias de salto. Na garagem, ele conduz até a
vaga mais esmagada. Aquela que
a mulher odeia. Entre o elevador
de serviço e as lixeiras. A mulher
espera que o marido puxe o freio
de mão e desligue o carro pra que
as portas destravem. Parece que
demora. A mulher abre de uma
vez. Acerta a coluna de concreto,
risca um vergão na lataria.
O marido desce e aciona o alarme enquanto a mulher segue esfregando as solas com os caquinhos do chão até o elevador.
Quando o elevador aparece, a
mulher levanta o pescoço, fica reparando nalguma coisa do teto e
segurando a porta até que o marido entre. Ele passa direto. Chega a
fazer vento. Então a mulher entra
e deixa a porta encostar gemendo. Ninguém aperta o botão. Parece que demora. Só quando o
marido vai acioná-lo é que a mulher habilita-se e toma-lhe a frente. É difícil descruzar os olhares
que se teimam no caminho. Um
andar... dois andares... três andares... O marido deixa o braço suado escorrer pelo revestimento de
alumínio, fazendo um barulho
arrepiado. A mulher estica-se toda e coloca-se junto da saída.
Quatro andares... cinco andares...
A cada andar que o elevador ganha, o marido dá uma batida
com a aliança naquela plaquinha
de lotação. Seis andares... sete andares... até o 15. Alguma coisa está prestes a explodir pelos narizes
quando finalmente chegam.
A mulher sai na frente. O marido vai atrás. Enquanto a mulher
vasculha a bolsa, o marido apanha sua chave e abre a porta do
apartamento. Quando ela encontra o que procura, ele já andou
um par de metros pelo corredor,
jogou o relógio na mesa e entrou
no banheiro. A mulher fecha a
porta do hall; passa a chave, o pega-ladrão, um trinco. Lá dentro o
marido urina fazendo barulho. A
mulher surge a tempo de ver as
gotículas rebaterem na privada,
refletirem com as luminárias e
garoarem pra fora. Ela chuta pra
se livrar das sandálias, que rebatem na parede. Cai um pedaço de
reboco. É pequeno.
O marido pisa nos calcanhares
pra se soltar dos sapatos. Deixa-os
desbeiçados no meio da passadeira, as meias derramadas por cima. A mulher senta-se na privada
com as pernas abertas. Apanha
um maço de papel higiênico e
limpa o piso junto do vaso. Teatral. O marido só não assobia porque não sabe. Então escova os
dentes. A mulher passa fio dental.
Coisas minúsculas espirram no
espelho que são obrigados à dividir. Os pescoços duros. Aquele silêncio berrando desesperado. A
mulher dá as costas ao marido,
mas aproxima-se dele. Para que
ele desça o zíper. O marido usa as
pontas dos dedos. Não consegue.
Em seguida põe força. É muita.
Acaba descosturando um bom
pedaço. A mulher vira-se pra ver
o estrago e acerta uma cotovelada
na costela do marido. O marido
quase perde a respiração. Toma
fôlego, junta a mulher pelas alças
do sutiã e dá-lhe uma bofetada. A
mulher cobre o rosto, lambe os lábios. Não acha sangue. Finge que
vai sair, volta-se e desfere-lhe
uma joelhada no baixo ventre. O
marido dobra-se; ergue-se e,
aproveitando que a mulher virou,
manda-lhe um pé na bunda. A
mulher tropeça na direção do
quarto e apoia-se na cômoda, espatifando bibelôs. Quando o marido se aproxima, ela puxa repentinamente o maleiro do guarda
roupa, acertando-lhe o supercílio.
Agora sai sangue e escorre e levanta um calombo. A mulher mal
tem tempo de dar conta disso tudo e se proteger da travesseirada.
É travesseiro, mas dói. E dá tontura. Depois o marido ainda apanha o travesseiro e joga-o pela janela. A mulher faz que vai pular
junto, percebe que o travesseiro é
dele; espera. Pega o despertador.
Joga nele. O marido desvia-se,
abaixa a cabeça, corre pra cima
dela. A mulher ginga, ele tropeça
no edredom e desaba sobre a cama. Por fim, a mulher atira-se sobre o marido... e têm a melhor noite de suas vidas.
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