São Paulo, quarta-feira, 11 de março de 2009

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No olho da rua

Espetáculo da cia. São Jorge de Variedades vai às ruas de São Paulo discutir atualidade de ideais revolucionários; texto costura fragmentos de Heiner Müller e Rosa de Luxemburgo

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Marcelo Reis (de short azul) e Mariana Senne (de peruca loura) em cena de "Quem Não Sabe Mais Quem É..." na r. Vitorino Camilo, na Barra Funda

LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL

Sem entender bem o que se passa, Caíque, 8, ajuda uma mulher de peruca loura, capa de chuva futurista e valise a pregar, no portão da escola dele, um cartaz em que se lê "sou o meu prisioneiro".
Na rua ao lado, pouco antes, a jovem que saía de casa recebeu da mesma figura uma "convocação para confabulações conjuntas", antes de ver uma ciclista de chapéu espacial, calça vermelha e bota listrada parar o trânsito e abrir uma faixa que ia de uma calçada à outra.
Sob o sol a pino do meio-dia, a Cia. São Jorge de Variedades sai às ruas da Barra Funda (região oeste de São Paulo) com seu novo espetáculo, "Quem Não Sabe Mais Quem É, o que É e Onde Está Precisa se Mexer", que estreia hoje.
O texto toma por base a dramaturgia do alemão Heiner Müller (1929-1995), célebre pela verve ácida e pela desconstrução de arquétipos do cânone teatral, como Hamlet e Medéia. A ela são amarradas meditações da ativista política Rosa de Luxemburgo (1871-1919), do filósofo Juliano Garcia Pessanha e do próprio elenco.
Do caldeirão, emerge a pergunta: sonhos libertários como os de três, quatro décadas atrás, ainda são viáveis ou todo gesto revolucionário está hoje fadado ao anacronismo? Surpreendidos pelo cortejo inusitado, os vizinhos da companhia respondem a seu modo.
"O barato é doido!", exclama o funcionário da oficina mecânica, diante do homem caracterizado de executivo que murmura frases como "o poder é solitário" e "o tempo já não trabalha a meu favor". Mal sabe ele que, na esquina seguinte, o ator trocará o terno por um short azul e um cocar de índio. Diante da seminudez, a menina de mochila nas costas reage: "Sai fora, neném!". Não verá o desassossegado que, depois de buzinar sem sucesso para a atriz que anda no meio da rua, cavará um espaço na esquerda e sairá cantando pneu.
Na volta à sede da São Jorge (ponto de partida do cortejo), quem tem ingresso conhece o "aparelho" em que se encontram os três revolucionários temporões que perambulavam há pouco pelo bairro: "Eles são quase uma paródia da própria companhia, que se reúne para brincar, falar o que pensa, cantar, sem saber muito por quê. O certo é que é preciso se mexer, ainda que com ações deslocadas, patéticas. É essa a provocação que o Müller faz: destruir nossa ordem interna, sair de nós mesmos", diz a diretora, Georgette Fadel, 35.

Sem partidarismos
Daí o movimento expansionista, em direção à rua -que a peça reencontra no fim. "Precisamos deixar de lidar com as pessoas como provedoras, conhecê-las de fato. E não é um discurso "paz e amor", mas sim de declarar guerra a nós mesmos, pois o outro revela nossas sombras", observa Fadel.
Apesar da filiação socialista de Müller, a diretora acha que o texto transcende inclinações partidárias: "Estou falando de PFL [atual DEM], PT e PMDB dentro de mim. Se fossem só forças externas, poderia tomar uma posição e dizer tchau". Além de "Quem Não Sabe...", Fadel dirige outro espetáculo em cartaz em São Paulo: "Cem Gramas de Dentes", da cia. Azul Celeste, de São José do Rio Preto (SP). O texto de Bosco Brasil narra o encontro de um matador com um líder comunitário.
"Ambos mostram crianças brincando de jogos adultos. Em "Quem Não Sabe...", é como se o "aparelho" fosse um playground que aprisiona. Não é uma crítica simples, porque, como artistas, também queremos brincar. Mas há enroscos na psique de que a criança em nós talvez não dê conta", diz a diretora. Sorte do menino Caíque, aquele que entrou na brincadeira da São Jorge sem nem desconfiar o que se passava.


QUEM NÃO SABE MAIS QUEM É, O QUE É E ONDE ESTÁ PRECISA SE MEXER
Quando: estreia hoje; qua. a sex., ao meio-dia; sáb., às 15h; até 26/4
Onde: Casa de São Jorge (r. Lopes de Oliveira, 342, Barra Funda, tel. 0/xx/ 11/3824-9339)
Quanto: R$ 20
Classificação: não indicado a menores de 16 anos



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