São Paulo, quinta-feira, 11 de abril de 2002

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GASTRONOMIA

Internet, livros, tentações

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Saí de férias no meio de uma série sobre domesticidade, a mulher e o trabalho na cozinha. Talvez tenha saído para ficar livre da série, quem sabe?
Mas férias não querem dizer nada para um viciado em livros que sempre acha que qualquer hora é hora de dar uma espiada no site da Amazon (www.amazon.com). Já estourei a verba do mês, aqui mesmo na livraria Cultura, mas a madrugada me pega com sorrateiro mouse escorregando pelo sítio da perdição.
Em primeiro lugar aparecem as recomendações personalizadas. "Hello, Maria! Se você não é Maria, clique aqui."
Já tenho esse livro, "Fast Food Nation". Na capa, um saquinho de batatas fritas do McDonald's. Acertaram na tentação da batata...
"E atenção, Maria, em qualquer dia da semana, um entre quatro americanos resolve comer num fast food sem dar a menor bola para os dois fatores: rapidez e preço. O fast food é tão ubíquo como a torta de maçã. Mas a indústria está atrás de... Leia mais."
E essa recomendação? Por que cargas d'água me interessaria? "Kurt Cobain e Mozart estão mortos", por Tim Barela, cinco estrelas. O queeeeê? Explicam que a indicação vem por eu ter encomendado do mesmo autor "Domesticity Isn't Pretty" (A Domesticidade Não é uma Gracinha, ou coisa parecida). É o relato (em quadrinhos) da vida doméstica de casais gays, nada muito diferente do que a vida de qualquer outro casal. O livro tem poucas informações e resenhas feitas apenas por leitores. Posso entrar numa fria, ainda não recebi a outra encomenda. Não.
Outro da lista, com cara séria, é "Domesticidade e Sujeira: Donas-de-Casa e Empregadas Domésticas nos Estados Unidos de 1920 a 1945", por Phyllis Palmer.
As mulheres brancas, de elite, concordaram em ficar para trás quando os homens largaram o trabalho produtivo feito em casa. A autora explica que, em parte, foi porque lhes foi prometido um emprego administrativo no lar, supervisionando as empregadas domésticas, geralmente negras, que fariam o trabalho sujo e pesado. Essa divisão não fez mais do que alimentar a idéia de superioridade de raça e classe e as persuadiu a aceitar a exclusão dos centros de poder masculino.
E essa outra indicação? Não dá para acreditar. Incrível! Parece uma cartilha com desenhos bem definidos para criança pintar. Em cada página, um aposento da casa com todos os móveis e os nomes em inglês e espanhol.
É a cartilha para a dona-de-casa que não fala espanhol. As autoras, Michelle Beck e Carmen Luz Vargo, criaram esse livro de referência para as famílias americanas que contratam empregadas mexicanas. Um instrumento útil para explicar as tarefas básicas.
"Scrub the tub and the shower." Esfregue a banheira e o chuveiro. "Scrub the toilet inside and outside." Esfregue a privada por dentro e por fora. Xi, esse livro pode dar facada. Cuidado, madame!
Mais uma indicação na lista tentadora. "Uma Interpretação Gastronômica do Amor", de Bob Shacochis. Bob é o homem dos anos 90: gosta de carne, sabe fazer seu bife e cozinha para a mulher dele que trabalha. Enquanto cozinha, reflete sobre o lugar da comida na sociedade moderna.
E ainda "Just a Housewife" (Só uma Dona-de-Casa). A ascensão e queda da domesticidade na América, de Glenna Matthews.
O livro descreve as atitudes em relação à casa através dos tempos, que vão de reverência total à falta de respeito e atenção para com a mulher...
Termina com as perguntas: pode a casa, o lugar que nos torna mais completamente humanos, sobreviver e prosperar no novo século sem que as mulheres sejam exploradas? Podemos domar a tecnologia para servir às necessidades humanas?
O fato é que todo mundo precisa de uma casa, seja lá como for. A casa ou a rua, a casa ou a carreira, para a mulher? Há valores importantes dos dois lados. Uma ênfase desproporcionada num deles, prejudicando o outro, empobrece a vida. Podemos, no entanto, aprender com a história -e perceber que a boa casa e a boa sociedade estão completamente interligadas. É tarefa das mulheres de hoje (e por que não dos homens também, pergunto eu?) criar a nova domesticidade.
"Psiu, Maria, psiu, venda os livros que comprou aqui e lucre US$ 694,12." Hum, uma idéia interessante.
E que tal um novo livro sobre Emily Dickinson e comida para crianças em escolas públicas, e o marido da Virginia Woolf não era tão mau assim, e biografias, muitas biografias, e um livro sobre urbanismo que nunca se viu igual, "The Timeless Way of Building", e outro sobre os tamanhos dos pênis nas estátuas renascentistas, não envelheça, Maria, elimine as rugas com boa alimentação, ai, meu santo, esse site sabe mais de mim do que minha mãe, por todos os pecados do mundo, livrai-me da amazon.com.amém.

ninahort@uol.com.br


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