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GASTRONOMIA
Internet, livros, tentações
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Saí de férias no meio de uma
série sobre domesticidade, a
mulher e o trabalho na cozinha.
Talvez tenha saído para ficar livre
da série, quem sabe?
Mas férias não querem dizer nada para um viciado em livros que
sempre acha que qualquer hora é
hora de dar uma espiada no site
da Amazon (www.amazon.com).
Já estourei a verba do mês, aqui
mesmo na livraria Cultura, mas a
madrugada me pega com sorrateiro mouse escorregando pelo sítio da perdição.
Em primeiro lugar aparecem as
recomendações personalizadas.
"Hello, Maria! Se você não é Maria, clique aqui."
Já tenho esse livro, "Fast Food
Nation". Na capa, um saquinho
de batatas fritas do McDonald's.
Acertaram na tentação da batata...
"E atenção, Maria, em qualquer
dia da semana, um entre quatro
americanos resolve comer num
fast food sem dar a menor bola
para os dois fatores: rapidez e preço. O fast food é tão ubíquo como
a torta de maçã. Mas a indústria
está atrás de... Leia mais."
E essa recomendação? Por que
cargas d'água me interessaria?
"Kurt Cobain e Mozart estão
mortos", por Tim Barela, cinco
estrelas. O queeeeê? Explicam que
a indicação vem por eu ter encomendado do mesmo autor "Domesticity Isn't Pretty" (A Domesticidade Não é uma Gracinha, ou
coisa parecida). É o relato (em
quadrinhos) da vida doméstica de
casais gays, nada muito diferente
do que a vida de qualquer outro
casal. O livro tem poucas informações e resenhas feitas apenas
por leitores. Posso entrar numa
fria, ainda não recebi a outra encomenda. Não.
Outro da lista, com cara séria, é
"Domesticidade e Sujeira: Donas-de-Casa e Empregadas Domésticas nos Estados Unidos de 1920 a
1945", por Phyllis Palmer.
As mulheres brancas, de elite,
concordaram em ficar para trás
quando os homens largaram o
trabalho produtivo feito em casa.
A autora explica que, em parte, foi
porque lhes foi prometido um
emprego administrativo no lar,
supervisionando as empregadas
domésticas, geralmente negras,
que fariam o trabalho sujo e pesado. Essa divisão não fez mais do
que alimentar a idéia de superioridade de raça e classe e as persuadiu a aceitar a exclusão dos centros de poder masculino.
E essa outra indicação? Não dá
para acreditar. Incrível! Parece
uma cartilha com desenhos bem
definidos para criança pintar. Em
cada página, um aposento da casa
com todos os móveis e os nomes
em inglês e espanhol.
É a cartilha para a dona-de-casa
que não fala espanhol. As autoras,
Michelle Beck e Carmen Luz Vargo, criaram esse livro de referência para as famílias americanas
que contratam empregadas mexicanas. Um instrumento útil para
explicar as tarefas básicas.
"Scrub the tub and the shower."
Esfregue a banheira e o chuveiro.
"Scrub the toilet inside and outside." Esfregue a privada por dentro e por fora. Xi, esse livro pode
dar facada. Cuidado, madame!
Mais uma indicação na lista tentadora. "Uma Interpretação Gastronômica do Amor", de Bob
Shacochis. Bob é o homem dos
anos 90: gosta de carne, sabe fazer
seu bife e cozinha para a mulher
dele que trabalha. Enquanto cozinha, reflete sobre o lugar da comida na sociedade moderna.
E ainda "Just a Housewife" (Só
uma Dona-de-Casa). A ascensão
e queda da domesticidade na
América, de Glenna Matthews.
O livro descreve as atitudes em
relação à casa através dos tempos,
que vão de reverência total à falta
de respeito e atenção para com a
mulher...
Termina com as perguntas: pode a casa, o lugar que nos torna
mais completamente humanos,
sobreviver e prosperar no novo
século sem que as mulheres sejam
exploradas? Podemos domar a
tecnologia para servir às necessidades humanas?
O fato é que todo mundo precisa de uma casa, seja lá como for. A
casa ou a rua, a casa ou a carreira,
para a mulher? Há valores importantes dos dois lados. Uma ênfase
desproporcionada num deles,
prejudicando o outro, empobrece
a vida. Podemos, no entanto,
aprender com a história -e perceber que a boa casa e a boa sociedade estão completamente interligadas. É tarefa das mulheres de
hoje (e por que não dos homens
também, pergunto eu?) criar a nova domesticidade.
"Psiu, Maria, psiu, venda os livros que comprou aqui e lucre
US$ 694,12." Hum, uma idéia interessante.
E que tal um novo livro sobre
Emily Dickinson e comida para
crianças em escolas públicas, e o
marido da Virginia Woolf não era
tão mau assim, e biografias, muitas biografias, e um livro sobre urbanismo que nunca se viu igual,
"The Timeless Way of Building",
e outro sobre os tamanhos dos pênis nas estátuas renascentistas,
não envelheça, Maria, elimine as
rugas com boa alimentação, ai,
meu santo, esse site sabe mais de
mim do que minha mãe, por todos os pecados do mundo, livrai-me da amazon.com.amém.
ninahort@uol.com.br
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