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São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Do mata! Esfola! Passando por Wagner e Cole Porter

Podia fazer parte do anedotário cívico de qualquer país, mas a frequência com que o caso se repete transcende o pitoresco e integra-se perfeitamente naquela passagem bíblica: o número dos imbecis é infinito, "stultorum numerus infinitus est".
Numa reunião política em tempos totalitários, depois de ouvirem vários oradores, inflamados uns, inflamadíssimos outros, os resistentes contra a ditadura saíram em passeata pelas ruas da cidade, gritando palavras de ordem contra o tirano local.
Percorridas as principais ruas e avenidas, o cansaço diminuiu o entusiasmo de alguns dos resistentes, que, para pouparem fôlego e darem o principal recado da passeata, limitavam-se a gritar:
-Mata! Esfola! Mata! Esfola!
Era a ponta terminal de comprido slogan revolucionário, clamando pela eliminação moral e física do ditador. E até que não era tão radical assim. Se o fosse, estaria invertido para o "Esfola! Mata!", mais cruel do que o outro, que primeiro matava e depois esfolava. Esfolando ainda vivo e depois matando, o déspota sofreria mais, pagando devidamente os crimes cometidos contra o povo.
Acontece que um dos integrantes da passeata, que sofria de asma ou das vias respiratórias, cansou-se antes dos demais e, para poupar os pulmões, passou a gritar apenas "Mata!", economizando o "Esfola!" para outra ocasião. Achava que assim estava fazendo o seu dever libertário, o importante era matar o tirano, o esfolar seria um castigo suplementar, sem dúvida merecido, mas inútil em termos de castigo.
Um manifestante que estava ao seu lado percebeu a mudança no grito de guerra do companheiro. Ignorando a asma e o problema nas vias respiratórias do colega de partido e de luta, tomou aquela economia verbal como diminuição no nível de radicalismo que a situação exigia. Terminada a passeata e cumprindo o parágrafo único de um artigo do estatuto do Movimento Pró-Libertação do Povo Tal, apresentou-se à sua Comissão Executiva e comunicou que o companheiro, durante a marcha, desfigurara a palavra de ordem que todos gritavam, limitando-se apenas ao "Mata!", mas omitindo o "Esfola!"
Não se tratava de um dissidente, uma vez que a situação não comportava alas e correntes contra a ditadura. Logo se tratava de um agente provocador infiltrado nas hostes da libertação, provavelmente um elemento da Polícia Secreta de Salvação do Estado, que estava em toda a parte, patrulhando o bom comportamento dos cidadãos.
Apresentado à Comissão Executiva, o assunto foi encaminhado à Comissão de Ética e depois à Assembléia Geral. Por unanimidade, chegaram à sentença da expulsão sumária sem direito de defesa. E, como o estatuto previa que para esses casos haveria pena de morte, o sujeito foi eliminado em seu quarto de pensão quando, após uma crise de asma, acionava aquela bombinha para respirar melhor.
Pode até parecer um conto de George Orwell ou um delírio pessoal do cronista, mas, tirante um ou outro pormenor irrelevante, como o da asma (o sujeito na realidade não sofria de asma, sofria de rinite na fossa nasal esquerda), garanto que a história é verdadeira, ocorrida num país da América Latina, mais exatamente do Cone Sul, no terço final do século 20.
Com pequenas variantes, a fúria radical de qualquer causa, boa ou má, produz casos iguais. Lembro as feministas que, durante o regime de Pinochet, no Chile, incitavam as mulheres a se recusarem ao orgasmo. Como a fêmea podia gozar sabendo que um ditador sanguinário sufocava um povo? Ter direito ao orgasmo, buscá-lo com todas as energias de seu aparelho sexual, era uma prova de alienação, uma falta de solidariedade para com os oprimidos, um apoio consciente à tortura e ao sacrifício dos mártires.
Grandes causas, grandes equívocos. Durante a Segunda Guerra Mundial, os mais exaltados se recusavam a ouvir Beethoven e Wagner -sendo que este último, sendo o anti-semita que foi e compositor preferido de Hitler, até hoje é patrulhado por alguns círculos radicais.
Na atual invasão do Iraque, a opinião pública mundial ficou contra os Estados Unidos -e ficou bem. O massacre promovido pelo Departamento de Estado, pelo Pentágono, pela CIA e pessoalmente pelo presidente George W. Bush, ficará como um dos crimes mais hediondos deste início de século, fazendo contraponto ao atentado do 11 de setembro de 2001, que foi a ação pessoal e até agora isolada de um grupo de terroristas. No ataque ao Iraque, expressa-se um Estado terrorista que deseja se impor pela força na comunidade internacional. O que distingue os dois crimes é a dimensão técnica, não o resultado final, lamentável nos dois casos.
Tudo bem. Joguemos pedras em Osama bin Laden, em George W. Bush e em seus falcões sanguinários. Mas não vamos deixar de ouvir Gershwin, Cole Porter, Jerome Kern, Nacio Herb Brown, suspirar pelas pernas de Cyd Charisse, apreciar o corpo escultural de Demi Moore e rir das piadas de Woody Allen.


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