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CARLOS HEITOR CONY
Do mata! Esfola! Passando por Wagner e Cole Porter
Podia fazer parte do anedotário cívico de qualquer país,
mas a frequência com que o caso
se repete transcende o pitoresco e
integra-se perfeitamente naquela
passagem bíblica: o número dos
imbecis é infinito, "stultorum numerus infinitus est".
Numa reunião política em tempos totalitários, depois de ouvirem vários oradores, inflamados
uns, inflamadíssimos outros, os
resistentes contra a ditadura saíram em passeata pelas ruas da cidade, gritando palavras de ordem
contra o tirano local.
Percorridas as principais ruas e
avenidas, o cansaço diminuiu o
entusiasmo de alguns dos resistentes, que, para pouparem fôlego
e darem o principal recado da
passeata, limitavam-se a gritar:
-Mata! Esfola! Mata! Esfola!
Era a ponta terminal de comprido slogan revolucionário, clamando pela eliminação moral e
física do ditador. E até que não
era tão radical assim. Se o fosse,
estaria invertido para o "Esfola!
Mata!", mais cruel do que o outro,
que primeiro matava e depois esfolava. Esfolando ainda vivo e depois matando, o déspota sofreria
mais, pagando devidamente os
crimes cometidos contra o povo.
Acontece que um dos integrantes da passeata, que sofria de asma ou das vias respiratórias, cansou-se antes dos demais e, para
poupar os pulmões, passou a gritar apenas "Mata!", economizando o "Esfola!" para outra ocasião.
Achava que assim estava fazendo
o seu dever libertário, o importante era matar o tirano, o esfolar
seria um castigo suplementar,
sem dúvida merecido, mas inútil
em termos de castigo.
Um manifestante que estava ao
seu lado percebeu a mudança no
grito de guerra do companheiro.
Ignorando a asma e o problema
nas vias respiratórias do colega de
partido e de luta, tomou aquela
economia verbal como diminuição no nível de radicalismo que a
situação exigia. Terminada a
passeata e cumprindo o parágrafo único de um artigo do estatuto
do Movimento Pró-Libertação do
Povo Tal, apresentou-se à sua Comissão Executiva e comunicou
que o companheiro, durante a
marcha, desfigurara a palavra de
ordem que todos gritavam, limitando-se apenas ao "Mata!", mas
omitindo o "Esfola!"
Não se tratava de um dissidente, uma vez que a situação não
comportava alas e correntes contra a ditadura. Logo se tratava de
um agente provocador infiltrado
nas hostes da libertação, provavelmente um elemento da Polícia
Secreta de Salvação do Estado,
que estava em toda a parte, patrulhando o bom comportamento
dos cidadãos.
Apresentado à Comissão Executiva, o assunto foi encaminhado à Comissão de Ética e depois à
Assembléia Geral. Por unanimidade, chegaram à sentença da expulsão sumária sem direito de defesa. E, como o estatuto previa
que para esses casos haveria pena
de morte, o sujeito foi eliminado
em seu quarto de pensão quando,
após uma crise de asma, acionava
aquela bombinha para respirar
melhor.
Pode até parecer um conto de
George Orwell ou um delírio pessoal do cronista, mas, tirante um
ou outro pormenor irrelevante,
como o da asma (o sujeito na realidade não sofria de asma, sofria
de rinite na fossa nasal esquerda),
garanto que a história é verdadeira, ocorrida num país da América
Latina, mais exatamente do Cone
Sul, no terço final do século 20.
Com pequenas variantes, a fúria radical de qualquer causa,
boa ou má, produz casos iguais.
Lembro as feministas que, durante o regime de Pinochet, no Chile,
incitavam as mulheres a se recusarem ao orgasmo. Como a fêmea
podia gozar sabendo que um ditador sanguinário sufocava um
povo? Ter direito ao orgasmo,
buscá-lo com todas as energias de
seu aparelho sexual, era uma prova de alienação, uma falta de solidariedade para com os oprimidos, um apoio consciente à tortura e ao sacrifício dos mártires.
Grandes causas, grandes equívocos. Durante a Segunda Guerra
Mundial, os mais exaltados se recusavam a ouvir Beethoven e
Wagner -sendo que este último,
sendo o anti-semita que foi e
compositor preferido de Hitler,
até hoje é patrulhado por alguns
círculos radicais.
Na atual invasão do Iraque, a
opinião pública mundial ficou
contra os Estados Unidos -e ficou bem. O massacre promovido
pelo Departamento de Estado, pelo Pentágono, pela CIA e pessoalmente pelo presidente George W.
Bush, ficará como um dos crimes
mais hediondos deste início de século, fazendo contraponto ao
atentado do 11 de setembro de
2001, que foi a ação pessoal e até
agora isolada de um grupo de terroristas. No ataque ao Iraque, expressa-se um Estado terrorista
que deseja se impor pela força na
comunidade internacional. O que
distingue os dois crimes é a dimensão técnica, não o resultado
final, lamentável nos dois casos.
Tudo bem. Joguemos pedras em
Osama bin Laden, em George W.
Bush e em seus falcões sanguinários. Mas não vamos deixar de
ouvir Gershwin, Cole Porter, Jerome Kern, Nacio Herb Brown, suspirar pelas pernas de Cyd Charisse, apreciar o corpo escultural de
Demi Moore e rir das piadas de
Woody Allen.
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