São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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Heróis e bufões ajudam a contar a história da capital em revistas de quadrinhos

São Paulo quadro-a-quadro

DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

São Paulo já foi cantada em versos, congelada em quadros e monumentos, tema de filmes e até de minissérie da Globo. Já estava na hora de a cidade reconhecer mais uma de suas outras tantas vocações: as histórias em quadrinhos.
Refúgio de uma considerável parcela de bons quadrinistas nacionais, do pioneiro Ângelo Agostini às revistinhas de terror dos anos 50, da redação de quadrinhos Disney da Abril ao mundialmente reconhecido Mauricio de Sousa, a cidade de São Paulo tem sido mais do que um cenário para as HQs produzidas aqui. É muitas vezes o seu personagem principal.
Aos 450 anos e alguns diazinhos a mais (prazos, gráfica, fotolitos, quadrinistas, sabe como é...), a paulicéia ganha uma homenagem mais desvairada do que nunca: "O Paulistano da Glória", uma "ópera-bufa" em quadrinhos, como definem os seus próprios criadores Xalberto, Sian e Bira Câmara, egressos do "udigrudi", outro fenômeno típico paulistano que apresentou laertes, angelis e carusos ao país três décadas atrás.
Iniciada por volta de 1983, abortada em 1987, retomada dez anos depois e só agora lançada pela editora Via Lettera, a HQ conta a saga de um "arquiteto frustrado e meio metido a artista" que luta para salvar a empresa de seu pai, a São Roque, à beira da concordata. Valores de família, vê? "Bééééé, vocês arquitetos são mesmo uns românticos!", desdenha o pai, um típico microempresário da Barra Funda às voltas com a crise de sua fábrica de... camisinhas?!
"O que a gente podia fazer? No início da década de 80, quando começamos a escrever a história, ninguém usava camisinha. Era coisa do século passado. Aí veio a Aids e, em poucos anos, camisinha era a indústria mais rentável que existia no país", comenta Bira, 53, justificando os quase 20 anos que a HQ levou para ficar pronta. "Não tem história de época? Não fazem história sobre bandeirantes? Então..."
Pois bem, além das camisinhas, dos fuscas e dos bandeirantes, "O Paulistano da Glória" envolve também Adoniran Barbosa ("Num quero tiro ao álvaro no Bixiga!"), os barões do café ("com light") e até os soldados constitucionalistas, conservados por criogenia no "underground" da revolução, situado no casarão de número 1.932 da av. Paulista. Tudo embalado em uma aura de misticismo-pré-apocalíptico-revolucionário digno das profecias furadas do lendário coronel Rolin.
Faltou só o Borba Gato.
"Tinha uma passagem do álbum em que o Borba Gato criava vida e acertava uma porrada no carro dos bandidos, mas demoramos tanto que, quando nos demos conta, o Luiz Gê já tinha desenhado uma história com isso."
Gê, ex-chargista político da Folha, também tem a sua própria saga paulistana. Publicada em 1991, nas páginas da hoje extinta "Revista Goodyear", "Fragmentos Completos" é uma história de 66 páginas, baseada em relatos de viajantes e artigos de jornais, sobre a construção -e a destruição- da avenida Paulista.
"São Paulo está para a HQ assim como o Rio de Janeiro está para o humor. Existe aqui essa tradição narrativa, é uma cidade que tem muito clima e que, se não é bela, é instigante, cinematográfica", aponta Gê, 50, formado em arquitetura pela USP e também um dos principais nomes do "udigrudi" paulistano. Foi o fundador da revista alternativa "Balão" e editor da "Circo", na década de 80.
Enquanto Bira vê a sua HQ como uma ópera-bufa, Gê prefere comparar os seus "Fragmentos Completos" a "uma sinfonia".
Como nos quatro movimentos de uma sinfonia clássica, há o furor inicial da inauguração da avenida Paulista, com suas carruagens, ciclistas e passeios; o surgimento dos casarões, a pujança industrial e os automóveis importados; os primeiros edifícios, o trânsito infernal, a grana ("que ergue e destrói coisas belas"); e, por fim, o futuro/presente das multinacionais, do setor financeiro.
"São Paulo tem um espírito muito destruidor, não saca a plasticidade das coisas, a importância da memória", lamenta Gê.
Em tempo: a editora Via Lettera diz ter procurado a Goodyear pedindo patrocínio para republicar "Fragmentos Completos", hoje um raro item de colecionador, mas teria sido informada que o assunto não interessa à empresa.


O PAULISTANO DA GLÓRIA. Autores: Xalberto, Bira Câmara e Sian. Editora: Via Lettera. Preço: R$ 18 (68 págs.).


REVISTA GOODYEAR ESPECIAL - FRAGMENTOS COMPLETOS. Autor: Luiz Gê. Onde encontrar: Gibiteca Henfil -°Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, Liberdade, São Paulo, tel. 0/xx/ 11/3277-3611, r. 247). De ter. a sex.: das 10h às 20h. Sáb. e dom.: das 10h às 18h. O material deve ser consultado no local.


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