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MARCELO COELHO
O samba vestido de preto
"Cartola" parece imitar, voluntariamente, o caráter aristocrático e evasivo do personagem
CONFESSO QUE sabia muito
pouco da vida e da obra de
Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), antes de ver o documentário sobre o compositor, feito
por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda,
que acaba de estrear em São Paulo.
Depois de sair do cinema, devo dizer que continuei mais ou menos na
mesma situação. Imagens raras de
arquivo, depoimentos e entrevistas
não faltam. Há mesmo uma profusão quase barroca de cenas, fotos,
gestos, rostos e sambas em "Cartola". Mas o filme parece voluntariamente imitar o caráter evasivo e
aristocrático do seu personagem.
Depois de operar um nódulo na
garganta, já no fim da vida, Cartola
sai do hospital e é entrevistado por
uma repórter de TV. Diz que nunca
mais irá desfilar na Mangueira; o
Carnaval, para ele, era um assunto
encerrado.
A frase é dita com simpatia, mas
sem nenhuma outra explicação. Logo em seguida, o documentário
mostra Cartola no sambódromo, ao
lado da velhíssima guarda da escola
de samba, sugerindo que o compositor tinha mudado de idéia.
Quem espera informações e datas
precisas sai um tanto desnorteado.
O documentário não conta com clareza, por exemplo, em que época e
em que circunstâncias Cartola compôs suas músicas mais conhecidas,
como "As Rosas Não Falam" ou
aquela, aparentemente tão repleta
de referências autobiográficas, que
diz que "o mundo é um moinho".
Embora acabe narrando a vida de
Cartola numa seqüência cronológica, o documentário recorre estranhamente a uma firula inicial. A primeira coisa que vemos são imagens
do enterro do compositor, enquanto
uma voz em off lê os parágrafos iniciais de "Memórias Póstumas de
Brás Cubas".
Logo em seguida, trechos de um
filme em preto-e-branco mostram
um esqueleto pendurado no teto,
enquanto alguém passa um microfone (ou será um contador Geiger?)
em suas costelas.
"Instigante", como se costuma dizer. Mas qual o significado? Há alguma semelhança entre Cartola e Brás
Cubas? Será que estamos às voltas
com uma paleontologia do "homem
brasileiro"? Ou existiria, da parte
dos diretores, a intenção de serem
corrosivos com Cartola, assim como
Machado de Assis em relação ao seu
"autor defunto", Brás Cubas, que era
também um "defunto autor"?
Ironias são constantes no documentário. Alguém conta que Cartola, na juventude, teve um romance
com uma mulher casada, e que, num
belo dia, o marido dela descobriu.
Para ilustrar a história, aparecem
cenas de uma comédia de Oscarito,
apavorado ao ser pego num "flagra"
conjugal.
Cemitérios, caveiras, chanchadas.
Cenas fantasmagóricas dos carnavais de 1930. Um longo black-out na
tela, que leva alguns espectadores a
reclamar da projeção. Uma bela tomada do bonde de Santa Teresa, lançando sua sombra distorcida sobre
prédios e sobrados quase em ruínas
pelo centro carioca. O mais fascinante em "Cartola" é o seu caráter
quase macabro. O filme inteiro é um
estranho cortejo fúnebre, atravessado de sambas -e sambistas tristíssimos.
Estamos longe do blablablá nostálgico a respeito do Rio dos anos 50,
com seus chopinhos, beijinhos, tons
e leblons. Não que aquilo não fosse
delicioso; deve ter sido. O documentário de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda deixa entrever, contudo -como quem abre com medo a tampa
de um caixão- uma cidade feia, grotesca, miserável.
"Cartola" é também um filme sobre a velhice. Grandes sambistas como Carlos Cachaça e Nelson Sargento surgem em ruínas, pobres,
desdentados, e quase todos os depoimentos parecem comprometidos pela amnésia alcoólica.
Ao mesmo tempo, é uma tradição
aristocrática, pouco acessível aos arrivistas, que se cultua ali. A "Estação
Primeira de Mangueira", seus trens
e casarios, não se revelam com clareza ao espectador: o que vemos são
trechos de paredes, pedaços de barracos, entre uma selva de fios elétricos e montanhas de arquivos cinematográficos.
Assim como na "Antropologia da
Face Gloriosa", série de fotos de Arthur Omar sobre o Carnaval, "Cartola" refuta qualquer paternalismo a
respeito do "povo brasileiro". Não
tem nada a ver com o espírito "como
era gostoso o meu favelado", tão em
voga hoje em dia. Não há saudade
em meio a tanto escombro.
É que a dança, dizia Chateaubriand na sua "Vida de Rancé", "começa em cima da poeira dos mortos,
e os túmulos brotam debaixo dos
passos da alegria".
coelhofsp@uol.com.br
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