São Paulo, quarta-feira, 11 de abril de 2007

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MARCELO COELHO

O samba vestido de preto

"Cartola" parece imitar, voluntariamente, o caráter aristocrático e evasivo do personagem

CONFESSO QUE sabia muito pouco da vida e da obra de Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), antes de ver o documentário sobre o compositor, feito por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, que acaba de estrear em São Paulo.
Depois de sair do cinema, devo dizer que continuei mais ou menos na mesma situação. Imagens raras de arquivo, depoimentos e entrevistas não faltam. Há mesmo uma profusão quase barroca de cenas, fotos, gestos, rostos e sambas em "Cartola". Mas o filme parece voluntariamente imitar o caráter evasivo e aristocrático do seu personagem.
Depois de operar um nódulo na garganta, já no fim da vida, Cartola sai do hospital e é entrevistado por uma repórter de TV. Diz que nunca mais irá desfilar na Mangueira; o Carnaval, para ele, era um assunto encerrado.
A frase é dita com simpatia, mas sem nenhuma outra explicação. Logo em seguida, o documentário mostra Cartola no sambódromo, ao lado da velhíssima guarda da escola de samba, sugerindo que o compositor tinha mudado de idéia.
Quem espera informações e datas precisas sai um tanto desnorteado. O documentário não conta com clareza, por exemplo, em que época e em que circunstâncias Cartola compôs suas músicas mais conhecidas, como "As Rosas Não Falam" ou aquela, aparentemente tão repleta de referências autobiográficas, que diz que "o mundo é um moinho".
Embora acabe narrando a vida de Cartola numa seqüência cronológica, o documentário recorre estranhamente a uma firula inicial. A primeira coisa que vemos são imagens do enterro do compositor, enquanto uma voz em off lê os parágrafos iniciais de "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
Logo em seguida, trechos de um filme em preto-e-branco mostram um esqueleto pendurado no teto, enquanto alguém passa um microfone (ou será um contador Geiger?) em suas costelas.
"Instigante", como se costuma dizer. Mas qual o significado? Há alguma semelhança entre Cartola e Brás Cubas? Será que estamos às voltas com uma paleontologia do "homem brasileiro"? Ou existiria, da parte dos diretores, a intenção de serem corrosivos com Cartola, assim como Machado de Assis em relação ao seu "autor defunto", Brás Cubas, que era também um "defunto autor"?
Ironias são constantes no documentário. Alguém conta que Cartola, na juventude, teve um romance com uma mulher casada, e que, num belo dia, o marido dela descobriu. Para ilustrar a história, aparecem cenas de uma comédia de Oscarito, apavorado ao ser pego num "flagra" conjugal.
Cemitérios, caveiras, chanchadas. Cenas fantasmagóricas dos carnavais de 1930. Um longo black-out na tela, que leva alguns espectadores a reclamar da projeção. Uma bela tomada do bonde de Santa Teresa, lançando sua sombra distorcida sobre prédios e sobrados quase em ruínas pelo centro carioca. O mais fascinante em "Cartola" é o seu caráter quase macabro. O filme inteiro é um estranho cortejo fúnebre, atravessado de sambas -e sambistas tristíssimos.
Estamos longe do blablablá nostálgico a respeito do Rio dos anos 50, com seus chopinhos, beijinhos, tons e leblons. Não que aquilo não fosse delicioso; deve ter sido. O documentário de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda deixa entrever, contudo -como quem abre com medo a tampa de um caixão- uma cidade feia, grotesca, miserável.
"Cartola" é também um filme sobre a velhice. Grandes sambistas como Carlos Cachaça e Nelson Sargento surgem em ruínas, pobres, desdentados, e quase todos os depoimentos parecem comprometidos pela amnésia alcoólica.
Ao mesmo tempo, é uma tradição aristocrática, pouco acessível aos arrivistas, que se cultua ali. A "Estação Primeira de Mangueira", seus trens e casarios, não se revelam com clareza ao espectador: o que vemos são trechos de paredes, pedaços de barracos, entre uma selva de fios elétricos e montanhas de arquivos cinematográficos.
Assim como na "Antropologia da Face Gloriosa", série de fotos de Arthur Omar sobre o Carnaval, "Cartola" refuta qualquer paternalismo a respeito do "povo brasileiro". Não tem nada a ver com o espírito "como era gostoso o meu favelado", tão em voga hoje em dia. Não há saudade em meio a tanto escombro.
É que a dança, dizia Chateaubriand na sua "Vida de Rancé", "começa em cima da poeira dos mortos, e os túmulos brotam debaixo dos passos da alegria".


coelhofsp@uol.com.br

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