São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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Primeira metade da obra da cantora é editada em caixa com projeto visual de Pinky Wainer

Nara pede passagem

Arquivo de Família
Nara na praia


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Está retomado o fio da meada. Com quatro anos de atraso em relação ao prometido, a gravadora Universal lança numa caixa a primeira metade da obra da cantora Nara Leão (1942-89), que permanecia quase toda inédita em CD até 2002. São 13 discos gravados entre 64 e 75, mais uma coletânea de (reais) raridades.
O resultado é excepcional desde a apresentação gráfica. Foi entregue à artista plástica (e sobrinha de Nara) Pinky Wainer, o que reabilita prática há muito posta de lado aqui, de entregar a concepção visual de projetos musicais de vulto a quem entende do riscado.
Tanto é assim que a exposição de Pinky sobre o que pretendeu fazer é tão simples quanto lógica: "Quando coloquei os 14 CDs empilhados, vi o cubo, que depois me levou obviamente ao fato de o nome Nara ter quatro letras. Usei o preto e o branco o tempo todo, porque ela tinha aquele corte de cabelo geométrico, e as capas de seus discos eram todas em preto-e-branco. Nara nos anos 60 era cúbica e em preto-e-branco".
Por que a colossal obra da artista foi fraturada no meio Pinky não sabe explicar (só sabe que o diretor de vendas da Universal, quando viu sua obra de arte, lamentou: "Como vou vender, se não tem o nome dela?"), mas já trabalha na concepção visual, agora colorida, do pedaço 1977-89 da obra da tia.
A Universal promete lançar a outra parte da obra até julho, não mais em caixa, e também tornar avulsos ("depois de julho") os títulos de agora. Mais quatro anos?
Se a demora em honrar a memória de uma das mais importantes artistas populares do Brasil em qualquer tempo é embaraçosa, o cuidado e a elegância com que a caixa nasce ajudam a lipoaspirar o vexame. O projeto beira a perfeição, só não alcançada por um grande furo n'água: a Universal suprimiu dois discos da fase.
O primeiro é "Liberdade Liberdade" (66), versão em LP de desengonçada peça teatral musical que Nara protagonizou com Paulo Autran, Tereza Rachel e Vianninha. É um dos episódios de mais tensa militância anti-regime militar da cultura brasileira e de Nara, e hoje poucos sabem de sua existência. Inexplicável.
O outro é a trilha sonora do filme "Quando o Carnaval Chegar", dividida com Chico Buarque e Maria Bethânia (antológico, o disco foi incluído em recente caixa de Chico, mas o que Nara e seu consumidor têm a ver com isso?).

Fora dos trilhos
Nara Leão foi, entre todas as figuras da tal MPB, a que mais permitiu que o curso de sua história artística fosse alterado pela outra história, com "h" grande. Lúcida e atirada, ela se virava do avesso para antecipar o Brasil dos seus sonhos -e ele acontecia!
Por isso, por exemplo, uma mocinha daquelas criadas com Leite Moça peitou desistir, ainda antes de lançar o primeiro LP, do status já garantido de vedete da bossa nova. A bossa fora sua escola, mas no Brasil de João Goulart e, depois, do horror militar, tornava-se imperativo trocar barquinho e patinho por armas mais pesadas.
Tal escolha rendeu a ela os abrasivos "Nara" (64), "Opinião de Nara" (64) e "O Canto Livre de Nara" (65), além do mitológico show "Opinião", dividido igualitariamente pela garota de Copacabana com o sambista de morro carioca Zé Keti e a entidade regionalista maranhense João do Vale.
Tais discos davam pequenas deixas à bossa, mas a sufocavam num tufão de novidades mais urgentes. No primeiro "Nara", ela apresentava a bossa afro-samba de Vinicius de Moraes com Baden Powell em "Berimbau" e "Consolação". Ao lado deles, estava o samba-jazz descomunal de Moacir Santos e Mário Telles, em "Nanã". A bossa já saíra correndo atrás da história, e Nara viu.
Outra vertente forte era a da revisitação ao samba de raiz, então jogado às traças. No mesmo "Nara" ela ressuscitava Cartola ("O Sol Nascerá") e Nelson Cavaquinho ("Luz Negra"). Era sambista.
Outra veia aberta ali se intensificaria num segundo momento em que Nara deixou a história atropelar seu destino. "Manhã de Liberdade" (66) e "Vento de Maio" (67) aprimoraram o faro de descobridora do que pudesse haver de mais novo e fresco na MPB.
Se já no início ela apresentara o virtuose Edu Lobo e o primitivista João do Vale, na segunda fase farejou o futuro fazendo alto-falante de voz pequena aos jovens Chico Buarque, Paulinho da Viola, Jards Macalé, Capinan, Gilberto Gil, Torquato Neto, Suely Costa, Dori Caymmi, Caetano Veloso.
Acima de todos eles, fez do mal compreendido Sidney Miller seu principal tradutor (e de "Pede Passagem" a canção-símbolo). Sidney abortou não muito tempo depois, mas esse foi outro dos acidentes tristes da história.
"Nara" (67) abriu o terceiro momento, em que ela se antecipava aos tropicalistas e antevia que a revisão e a modernização da canção antiga era premente, útil e necessária. Passou a gravar delícias populares ou semi-eruditas de João de Barro, Ary Barroso, Lamartine Babo, Custódio Mesquita, Assis Valente, Jayme Ovalle, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno...
Os tropicalistas entenderam o recado e o usaram para explodir a história mais uma vez. Nara foi das poucas a compreender e aderir, participando de raspão do disco-manifesto do movimento e cooptando Rogério Duprat para arranjar e reger o melhor de seus LPs, "Nara Leão" (68). Até modinha do império cabia na visão tropicalista de Nara, que no entanto dispensou clichês que Duprat poderia lhe trazer e extraiu dele um disco romântico, quase clássico.
O desfecho político imediato foi de AI-5, exílios, tortura -Nara foi para Paris, onde ficou privada da antena antecipadora da história que seu país lhe propiciava. Incapaz de dialogar com ele, gravou de lá, pela primeira vez, um disco de bossa nova ortodoxa e rígida. "Dez Anos Depois" (71) marca definitiva mudança de curso e provável início de sua amargura.
Surda, muda, cega e violentada, passou a fazer discos como "Meu Primeiro Amor" (75), incluído equivocadamente na caixa (porque pertence à sombria fase "colorida" de Nara). É um álbum de cantigas de ninar, refúgio de Nara nos abraços de seus filhos, mas também pista de que quem não se via mais apta a interagir com a história presente preferia fazer o papel irônico da cantadora de pequenos "causos", moça sitiante de um latifúndio que não se chamava Brasil. E era um modo torto de ainda interagir, entendeu?


Nara Leão     
Lançamento: Universal
Quanto: entre R$ 250 e R$ 320, em média (caixa com 14 CDs)




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