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Primeira metade da obra da cantora é editada em caixa com projeto visual de Pinky Wainer
Nara pede passagem
Arquivo de Família
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Nara na praia |
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Está retomado o fio da
meada. Com quatro anos de
atraso em relação ao prometido, a
gravadora Universal lança numa
caixa a primeira metade da obra
da cantora Nara Leão (1942-89),
que permanecia quase toda inédita em CD até 2002. São 13 discos
gravados entre 64 e 75, mais uma
coletânea de (reais) raridades.
O resultado é excepcional desde
a apresentação gráfica. Foi entregue à artista plástica (e sobrinha
de Nara) Pinky Wainer, o que reabilita prática há muito posta de lado aqui, de entregar a concepção
visual de projetos musicais de vulto a quem entende do riscado.
Tanto é assim que a exposição
de Pinky sobre o que pretendeu
fazer é tão simples quanto lógica:
"Quando coloquei os 14 CDs empilhados, vi o cubo, que depois
me levou obviamente ao fato de o
nome Nara ter quatro letras. Usei
o preto e o branco o tempo todo,
porque ela tinha aquele corte de
cabelo geométrico, e as capas de
seus discos eram todas em preto-e-branco. Nara nos anos 60 era
cúbica e em preto-e-branco".
Por que a colossal obra da artista foi fraturada no meio Pinky não
sabe explicar (só sabe que o diretor de vendas da Universal, quando viu sua obra de arte, lamentou:
"Como vou vender, se não tem o
nome dela?"), mas já trabalha na
concepção visual, agora colorida,
do pedaço 1977-89 da obra da tia.
A Universal promete lançar a
outra parte da obra até julho, não
mais em caixa, e também tornar
avulsos ("depois de julho") os títulos de agora. Mais quatro anos?
Se a demora em honrar a memória de uma das mais importantes artistas populares do Brasil em
qualquer tempo é embaraçosa, o
cuidado e a elegância com que a
caixa nasce ajudam a lipoaspirar o
vexame. O projeto beira a perfeição, só não alcançada por um
grande furo n'água: a Universal
suprimiu dois discos da fase.
O primeiro é "Liberdade Liberdade" (66), versão em LP de desengonçada peça teatral musical
que Nara protagonizou com Paulo Autran, Tereza Rachel e Vianninha. É um dos episódios de
mais tensa militância anti-regime
militar da cultura brasileira e de
Nara, e hoje poucos sabem de sua
existência. Inexplicável.
O outro é a trilha sonora do filme "Quando o Carnaval Chegar",
dividida com Chico Buarque e
Maria Bethânia (antológico, o disco foi incluído em recente caixa de
Chico, mas o que Nara e seu consumidor têm a ver com isso?).
Fora dos trilhos
Nara Leão foi, entre todas as figuras da tal MPB, a que mais permitiu que o curso de sua história
artística fosse alterado pela outra
história, com "h" grande. Lúcida e
atirada, ela se virava do avesso para antecipar o Brasil dos seus sonhos -e ele acontecia!
Por isso, por exemplo, uma mocinha daquelas criadas com Leite
Moça peitou desistir, ainda antes
de lançar o primeiro LP, do status
já garantido de vedete da bossa
nova. A bossa fora sua escola, mas
no Brasil de João Goulart e, depois, do horror militar, tornava-se
imperativo trocar barquinho e
patinho por armas mais pesadas.
Tal escolha rendeu a ela os abrasivos "Nara" (64), "Opinião de
Nara" (64) e "O Canto Livre de
Nara" (65), além do mitológico
show "Opinião", dividido igualitariamente pela garota de Copacabana com o sambista de morro
carioca Zé Keti e a entidade regionalista maranhense João do Vale.
Tais discos davam pequenas
deixas à bossa, mas a sufocavam
num tufão de novidades mais urgentes. No primeiro "Nara", ela
apresentava a bossa afro-samba
de Vinicius de Moraes com Baden
Powell em "Berimbau" e "Consolação". Ao lado deles, estava o
samba-jazz descomunal de Moacir Santos e Mário Telles, em "Nanã". A bossa já saíra correndo
atrás da história, e Nara viu.
Outra vertente forte era a da revisitação ao samba de raiz, então
jogado às traças. No mesmo "Nara" ela ressuscitava Cartola ("O
Sol Nascerá") e Nelson Cavaquinho ("Luz Negra"). Era sambista.
Outra veia aberta ali se intensificaria num segundo momento em
que Nara deixou a história atropelar seu destino. "Manhã de Liberdade" (66) e "Vento de Maio"
(67) aprimoraram o faro de descobridora do que pudesse haver
de mais novo e fresco na MPB.
Se já no início ela apresentara o
virtuose Edu Lobo e o primitivista
João do Vale, na segunda fase farejou o futuro fazendo alto-falante de voz pequena aos jovens Chico Buarque, Paulinho da Viola,
Jards Macalé, Capinan, Gilberto
Gil, Torquato Neto, Suely Costa,
Dori Caymmi, Caetano Veloso.
Acima de todos eles, fez do mal
compreendido Sidney Miller seu
principal tradutor (e de "Pede
Passagem" a canção-símbolo).
Sidney abortou não muito tempo
depois, mas esse foi outro dos acidentes tristes da história.
"Nara" (67) abriu o terceiro momento, em que ela se antecipava
aos tropicalistas e antevia que a
revisão e a modernização da canção antiga era premente, útil e necessária. Passou a gravar delícias
populares ou semi-eruditas de
João de Barro, Ary Barroso, Lamartine Babo, Custódio Mesquita, Assis Valente, Jayme Ovalle,
Ernesto Nazareth, Villa-Lobos,
Alberto Nepomuceno...
Os tropicalistas entenderam o
recado e o usaram para explodir a
história mais uma vez. Nara foi
das poucas a compreender e aderir, participando de raspão do disco-manifesto do movimento e
cooptando Rogério Duprat para
arranjar e reger o melhor de seus
LPs, "Nara Leão" (68). Até modinha do império cabia na visão tropicalista de Nara, que no entanto
dispensou clichês que Duprat poderia lhe trazer e extraiu dele um
disco romântico, quase clássico.
O desfecho político imediato foi
de AI-5, exílios, tortura -Nara
foi para Paris, onde ficou privada
da antena antecipadora da história que seu país lhe propiciava. Incapaz de dialogar com ele, gravou
de lá, pela primeira vez, um disco
de bossa nova ortodoxa e rígida.
"Dez Anos Depois" (71) marca
definitiva mudança de curso e
provável início de sua amargura.
Surda, muda, cega e violentada,
passou a fazer discos como "Meu
Primeiro Amor" (75), incluído
equivocadamente na caixa (porque pertence à sombria fase "colorida" de Nara). É um álbum de
cantigas de ninar, refúgio de Nara
nos abraços de seus filhos, mas
também pista de que quem não se
via mais apta a interagir com a
história presente preferia fazer o
papel irônico da cantadora de pequenos "causos", moça sitiante de
um latifúndio que não se chamava Brasil. E era um modo torto de
ainda interagir, entendeu?
Nara Leão
Lançamento: Universal
Quanto: entre R$ 250 e R$ 320, em
média (caixa com 14 CDs)
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