São Paulo, terça-feira, 11 de maio de 2004

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BERNARDO CARVALHO

O mapa do tesouro

No início dos anos 60, quando ainda era criança e passava fome, no norte da China, Mo Yan chegou a comer carvão e gostou. Não é de espantar que tenha decidido ser escritor depois de ouvir dizer que os escritores comiam bolinhos todos os dias -e não só uma vez por ano, como a sua família de camponeses miseráveis. Talvez também não seja por acaso que "O Mapa do Tesouro" (Cangbao Tu), pequena narrativa de Mo Yan publicada neste ano na França (Editions Philippe Picquier), por ocasião do Salão do Livro em homenagem à China, se passe num restaurante especializado em bolinhos.
Aos 48 anos, Mo Yan (seu nome original é Guan Moye) é hoje um dos expoentes da literatura chinesa, comparado a Rabelais, Günter Grass e García Márquez. Depois de uma infância miserável e de uma adolescência difícil no campo, sem estudos, conseguiu entrar para o Exército e nunca mais passou fome. O Exército lhe permitiu escrever. Era considerado um soldado exemplar, porque ficava imóvel quando montava guarda, "escrevendo em pensamento".
Em 1987, ganhou notoriedade com o romance histórico "O Sorgo Vermelho", adaptado para o cinema por Zhang Yimou. Deixou o Exército há sete anos e hoje vive de literatura. É prolífico (tem nove romances e mais de 70 contos publicados), o que dá um sentido irônico ao pseudônimo Mo Yan, que significa "não falar".
Diante de uma obra tão extensa, a novela "O Mapa do Tesouro" pode parecer um título irrisório. Mas dá a chave para o percurso inusitado que esse autor traçou, indo redescobrir a tradição chinesa, inesperadamente, pelo viés da melhor prosa ocidental moderna.
Desde o início do século 20, a tradição é um obstáculo que os escritores chineses tentam ultrapassar, num esforço de ocidentalização e modernização. Depois de viver os horrores da Revolução Cultural, que pôs sob suspeita todo intelectual que mantinha um elo com o passado e com a transmissão do conhecimento histórico, Mo Yan vai fazer o caminho inverso, resgatando no exterior os elementos para a renovação da tradição.
Os escritores chineses eram "encorajados" pelo maoísmo a seguir os ditames do realismo socialista. Quando Mo Yan descobre finalmente os livros de Kafka, nos anos 80, o contato com a prosa ocidental só lhe dá mais fôlego para seguir uma outra via, que ele já intuía e esboçava. Pelo filtro da prosa ocidental (Kafka, Borges etc.), ele desperta para o potencial das parábolas e das fábulas dentro da modernidade literária. Reconhece em escritores estrangeiros o espectro da influência da sua própria cultura.
Talvez por apresentar de uma maneira tão descaradamente irônica a exuberância, a cor local, as metáforas e a alegoria política, o tom satírico e fantástico que costumam ser incensados como características essenciais dos seus romances que mais satisfazem a sede de exotismo do Ocidente, "O Mapa do Tesouro" seja a pedra de toque para entender como esse filho de camponeses da Província de Shandong conseguiu ouvir os ecos da China antiga onde eram menos prováveis, na modernidade ocidental, pela estratégia oposta à dos escritores chineses que procuravam na modernidade ocidental uma forma de escapar à China antiga.
Em "O Mapa do Tesouro", Mo Yan vai se entregar aos gêneros clássicos da parábola, da lenda e da fábula. E vai tirar deles uma pérola da literatura contemporânea. Um homem andando pelas ruas de Pequim é abordado por um velho colega da Província, que não vê há anos e de quem agora tenta se desvencilhar em vão. O camponês, que está na capital sem um tostão, força o amigo a convidá-lo para comer. Entram num pequeno restaurante às moscas e são atendidos por um velho casal de proprietários.
Basta se sentarem para o amigo não parar mais de contar histórias mirabolantes, que vão se encadeando umas nas outras e tratam de coisas inacreditáveis, mas sobretudo de um bigode de tigre capaz de fazer ver a verdadeira natureza dos homens, os animais que no fundo os homens seriam.
Mo Yan passou as noites da infância a ouvir os adultos contando histórias fantásticas. "Acreditava nessas histórias: que um galo pudesse se transformar em príncipe... e ainda acredito quando escrevo os meus livros!" Trabalhava no campo: "Passei mais tempo entre os animais do que entre os homens".
Desde o primeiro parágrafo de "O Mapa do Tesouro" ("Esta história, do começo ao fim, só tem uma palavra verdadeira -esta história, do começo ao fim, não tem nenhuma parte verdadeira"), tudo é contradição. O texto diz e se desdiz. A lenda e a fábula são retomadas, mas com a ironia da modernidade.
Mo Yan faz da sua narrativa a anatomia da imaginação, dissecando-a no calor da hora, mostrando como ela é construída por associações e livres associações e encadeamentos produzidos pelo acaso. As próprias histórias se desdobram e se associam e incorporam o que têm à volta para poder chegar a um sentido no final. É como se o acaso tivesse papel de autor: os velhos proprietários vão aproveitar a logorréia do cliente mitômano para também contar a sua história, que por sua vez será incorporada pelo cliente para arrematar o seu delírio narrativo com um desfecho genial, borgiano e circular, revelando por fim que o mapa do tesouro é a própria imaginação.


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