|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
O mapa do tesouro
No início dos anos 60, quando ainda era criança e passava fome, no norte da China, Mo
Yan chegou a comer carvão e gostou. Não é de espantar que tenha
decidido ser escritor depois de ouvir dizer que os escritores comiam
bolinhos todos os dias -e não só
uma vez por ano, como a sua família de camponeses miseráveis.
Talvez também não seja por acaso que "O Mapa do Tesouro"
(Cangbao Tu), pequena narrativa de Mo Yan publicada neste
ano na França (Editions Philippe
Picquier), por ocasião do Salão do
Livro em homenagem à China, se
passe num restaurante especializado em bolinhos.
Aos 48 anos, Mo Yan (seu nome
original é Guan Moye) é hoje um
dos expoentes da literatura chinesa, comparado a Rabelais, Günter
Grass e García Márquez. Depois
de uma infância miserável e de
uma adolescência difícil no campo, sem estudos, conseguiu entrar
para o Exército e nunca mais passou fome. O Exército lhe permitiu
escrever. Era considerado um soldado exemplar, porque ficava
imóvel quando montava guarda,
"escrevendo em pensamento".
Em 1987, ganhou notoriedade
com o romance histórico "O Sorgo
Vermelho", adaptado para o cinema por Zhang Yimou. Deixou
o Exército há sete anos e hoje vive
de literatura. É prolífico (tem nove romances e mais de 70 contos
publicados), o que dá um sentido
irônico ao pseudônimo Mo Yan,
que significa "não falar".
Diante de uma obra tão extensa, a novela "O Mapa do Tesouro" pode parecer um título irrisório. Mas dá a chave para o percurso inusitado que esse autor
traçou, indo redescobrir a tradição chinesa, inesperadamente,
pelo viés da melhor prosa ocidental moderna.
Desde o início do século 20, a
tradição é um obstáculo que os escritores chineses tentam ultrapassar, num esforço de ocidentalização e modernização. Depois de viver os horrores da Revolução Cultural, que pôs sob suspeita todo
intelectual que mantinha um elo
com o passado e com a transmissão do conhecimento histórico,
Mo Yan vai fazer o caminho inverso, resgatando no exterior os
elementos para a renovação da
tradição.
Os escritores chineses eram "encorajados" pelo maoísmo a seguir
os ditames do realismo socialista.
Quando Mo Yan descobre finalmente os livros de Kafka, nos
anos 80, o contato com a prosa
ocidental só lhe dá mais fôlego
para seguir uma outra via, que
ele já intuía e esboçava. Pelo filtro
da prosa ocidental (Kafka, Borges
etc.), ele desperta para o potencial
das parábolas e das fábulas dentro da modernidade literária. Reconhece em escritores estrangeiros o espectro da influência da
sua própria cultura.
Talvez por apresentar de uma
maneira tão descaradamente irônica a exuberância, a cor local, as
metáforas e a alegoria política, o
tom satírico e fantástico que costumam ser incensados como características essenciais dos seus
romances que mais satisfazem a
sede de exotismo do Ocidente, "O
Mapa do Tesouro" seja a pedra
de toque para entender como esse
filho de camponeses da Província
de Shandong conseguiu ouvir os
ecos da China antiga onde eram
menos prováveis, na modernidade ocidental, pela estratégia oposta à dos escritores chineses que
procuravam na modernidade
ocidental uma forma de escapar à
China antiga.
Em "O Mapa do Tesouro", Mo
Yan vai se entregar aos gêneros
clássicos da parábola, da lenda e
da fábula. E vai tirar deles uma
pérola da literatura contemporânea. Um homem andando pelas
ruas de Pequim é abordado por
um velho colega da Província,
que não vê há anos e de quem
agora tenta se desvencilhar em
vão. O camponês, que está na capital sem um tostão, força o amigo a convidá-lo para comer. Entram num pequeno restaurante
às moscas e são atendidos por um
velho casal de proprietários.
Basta se sentarem para o amigo
não parar mais de contar histórias mirabolantes, que vão se encadeando umas nas outras e tratam de coisas inacreditáveis, mas
sobretudo de um bigode de tigre
capaz de fazer ver a verdadeira
natureza dos homens, os animais
que no fundo os homens seriam.
Mo Yan passou as noites da infância a ouvir os adultos contando histórias fantásticas. "Acreditava nessas histórias: que um galo
pudesse se transformar em príncipe... e ainda acredito quando escrevo os meus livros!" Trabalhava
no campo: "Passei mais tempo
entre os animais do que entre os
homens".
Desde o primeiro parágrafo de
"O Mapa do Tesouro" ("Esta história, do começo ao fim, só tem
uma palavra verdadeira -esta
história, do começo ao fim, não
tem nenhuma parte verdadeira"), tudo é contradição. O texto
diz e se desdiz. A lenda e a fábula
são retomadas, mas com a ironia
da modernidade.
Mo Yan faz da sua narrativa a
anatomia da imaginação, dissecando-a no calor da hora, mostrando como ela é construída por
associações e livres associações e
encadeamentos produzidos pelo
acaso. As próprias histórias se
desdobram e se associam e incorporam o que têm à volta para poder chegar a um sentido no final.
É como se o acaso tivesse papel de
autor: os velhos proprietários vão
aproveitar a logorréia do cliente
mitômano para também contar a
sua história, que por sua vez será
incorporada pelo cliente para arrematar o seu delírio narrativo
com um desfecho genial, borgiano e circular, revelando por fim
que o mapa do tesouro é a própria imaginação.
Texto Anterior: Bastidores: Série mostra percalços de casais famosos Próximo Texto: A voz de um século Índice
|