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A voz de um século
Centenários de nascimento, comemorados hoje, expõem visões das artes de Bidu Sayão e Salvador Dalí
JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A voz de Bidu Sayão (1904-1999) era delicada. Não se caracterizou pelo volume extraordinário. Mas basta tocar um de seus
discos para que se perceba: essa
voz se impõe; sua presença e alcance afirmam-se, envolvem o
ouvinte; o canto "toma o comando", como disse um crítico, e exige a atenção.
Um pianíssimo absoluto, como
aquele, inigualável, que termina o
"Addio Senza Rancor", de "La
Bohème", captado numa gravação ao vivo na qual a cantora madura contracena com Giuseppe di
Stefano, parece um milagre. No
palco, em meio à representação, o
fio de som dourado prolonga-se
sem que se perca nenhuma nuança, apesar da técnica precária dos
velhos acetatos. O timbre sempre
foi maravilhosamente homogêneo, a pronúncia sempre clara e
perfeita, a inflexão, musical e dramática, sempre justa.
Bidu Sayão começou a estudar
com Elena Theodorini, uma cantora de primeira grandeza, romena de nascimento. Depois, Bidu
Sayão aperfeiçoou-se na França
com Jean de Reszke, tenor lendário pela elegância do estilo, pela
inteligência do fraseado, mítico
predecessor de Caruso no Metropolitan.
A primeira parte de sua carreira
transcorreu sobretudo na Europa.
Pelos papéis de seu repertório, como Lucia ou Lakmé, a voz devia
ser leve, ágil, brilhante, com agudos fáceis. É assim que a ouvimos
nas antigas gravações de duas
árias de "Il Guarany". Depois de
sua estréia no Metropolitan Opera de Nova York, em 1937, ela se
tornou uma das grandes estrelas
naquele teatro por quase duas décadas. A voz amadureceu, assentando-se num registro médio
mais pleno, de uma beleza que
permaneceu intacta. É essa a que
conhecemos hoje, por meio de
gravações em estúdio ou captadas
de apresentações ao vivo.
As primeiras têm a vantagem da
qualidade técnica e possuem uma
intensidade poética muito rara.
Ela advém do domínio técnico e
da musicalidade a serviço da
emoção. Não comportam nada
da frieza trazida pelo estúdio. Como era incapaz de errar, Bidu Sayão gravava de uma tacada só, dizendo: "Se você não consegue fazer direito da primeira vez, ao repetir, só piora". Sua "Démoiselle
Élue", de Debussy, sua "Non Credea Mirarti", da "Sonnambula",
encontram-se entre os mais esplêndidos registros sonoros jamais realizados. Essas várias gravações foram reeditadas em CD:
dois recitais pela Sony e toda a "La
Bohème", em parceria com Tucker, primeira ópera completa realizada em estúdio nos EUA.
Entre os discos captados ao vivo, é preciso ouvir sua "Mélisande"; sua "Manon" dirigida por
Beecham; seu Mozart, sob a regência de Walter ou de Krips; seu
"Romeu e Julieta" incandescente,
ao lado de Björling; sua insuperável "Traviata"; os endiabrados
"Barbiere", "Elisir" e "Don Pasquale"; seu "Rigoletto", com
Warren, em que o timbre imensamente escuro do barítono serve
de fundo para a luminosidade de
um canto feminino que nunca esmorece.
Há os concertos de San Francisco (Eklipse). Há um álbum com
transmissões radiofônicas nos
EUA, mais vários discos de 78
RPM brasileiros, de 1930. Destes,
alguns estavam transcritos num
precioso LP da RCA, feito no Brasil há 40 anos, que já deveria ter sido mil vezes republicado em CD.
Bidu Sayão pode ser vista, interpretando, no vídeo publicado em
1990 pela VAI, que contém recitais feitos para a televisão norte-americana. Quem sabe, eles sairão em DVD, com merecida remasterização sonora.
Jorge Coli é historiador da arte
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