São Paulo, terça-feira, 11 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A voz de um século

Centenários de nascimento, comemorados hoje, expõem visões das artes de Bidu Sayão e Salvador Dalí

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A voz de Bidu Sayão (1904-1999) era delicada. Não se caracterizou pelo volume extraordinário. Mas basta tocar um de seus discos para que se perceba: essa voz se impõe; sua presença e alcance afirmam-se, envolvem o ouvinte; o canto "toma o comando", como disse um crítico, e exige a atenção.
Um pianíssimo absoluto, como aquele, inigualável, que termina o "Addio Senza Rancor", de "La Bohème", captado numa gravação ao vivo na qual a cantora madura contracena com Giuseppe di Stefano, parece um milagre. No palco, em meio à representação, o fio de som dourado prolonga-se sem que se perca nenhuma nuança, apesar da técnica precária dos velhos acetatos. O timbre sempre foi maravilhosamente homogêneo, a pronúncia sempre clara e perfeita, a inflexão, musical e dramática, sempre justa.
Bidu Sayão começou a estudar com Elena Theodorini, uma cantora de primeira grandeza, romena de nascimento. Depois, Bidu Sayão aperfeiçoou-se na França com Jean de Reszke, tenor lendário pela elegância do estilo, pela inteligência do fraseado, mítico predecessor de Caruso no Metropolitan.
A primeira parte de sua carreira transcorreu sobretudo na Europa. Pelos papéis de seu repertório, como Lucia ou Lakmé, a voz devia ser leve, ágil, brilhante, com agudos fáceis. É assim que a ouvimos nas antigas gravações de duas árias de "Il Guarany". Depois de sua estréia no Metropolitan Opera de Nova York, em 1937, ela se tornou uma das grandes estrelas naquele teatro por quase duas décadas. A voz amadureceu, assentando-se num registro médio mais pleno, de uma beleza que permaneceu intacta. É essa a que conhecemos hoje, por meio de gravações em estúdio ou captadas de apresentações ao vivo.
As primeiras têm a vantagem da qualidade técnica e possuem uma intensidade poética muito rara. Ela advém do domínio técnico e da musicalidade a serviço da emoção. Não comportam nada da frieza trazida pelo estúdio. Como era incapaz de errar, Bidu Sayão gravava de uma tacada só, dizendo: "Se você não consegue fazer direito da primeira vez, ao repetir, só piora". Sua "Démoiselle Élue", de Debussy, sua "Non Credea Mirarti", da "Sonnambula", encontram-se entre os mais esplêndidos registros sonoros jamais realizados. Essas várias gravações foram reeditadas em CD: dois recitais pela Sony e toda a "La Bohème", em parceria com Tucker, primeira ópera completa realizada em estúdio nos EUA.
Entre os discos captados ao vivo, é preciso ouvir sua "Mélisande"; sua "Manon" dirigida por Beecham; seu Mozart, sob a regência de Walter ou de Krips; seu "Romeu e Julieta" incandescente, ao lado de Björling; sua insuperável "Traviata"; os endiabrados "Barbiere", "Elisir" e "Don Pasquale"; seu "Rigoletto", com Warren, em que o timbre imensamente escuro do barítono serve de fundo para a luminosidade de um canto feminino que nunca esmorece.
Há os concertos de San Francisco (Eklipse). Há um álbum com transmissões radiofônicas nos EUA, mais vários discos de 78 RPM brasileiros, de 1930. Destes, alguns estavam transcritos num precioso LP da RCA, feito no Brasil há 40 anos, que já deveria ter sido mil vezes republicado em CD. Bidu Sayão pode ser vista, interpretando, no vídeo publicado em 1990 pela VAI, que contém recitais feitos para a televisão norte-americana. Quem sabe, eles sairão em DVD, com merecida remasterização sonora.


Jorge Coli é historiador da arte

Texto Anterior: Bernardo Carvalho: O mapa do tesouro
Próximo Texto: Mostras celebram Dalí, mestre do surrealismo e da auto-promoção
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.