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comentário
Pensava que ia me irritar. Engano, achei bom
FRANCISCO DAUDT DA VEIGA
COLUNISTA DA REVISTA DA FOLHA
Magritte, em um de seus
quadros, pintou um cachimbo com os dizeres: "Isto não é
um cachimbo". Ele estava
certo. Não era um cachimbo,
era um quadro.
Assim, também, a série
"Em Terapia" não é sobre
uma terapia; é uma interessante ficção. O realismo é tal
que as pessoas poderiam
pensar que vêem um processo de psicoterapia tal como
ele é. Lembrem-se, então, do
cachimbo do Magritte.
O primeiro episódio trata
de uma paciente apaixonada
pelo terapeuta. Pode parecer
um lugar-comum, mas, vistas por um psicanalista (eu,
no caso), algumas coisas chamam a atenção. A paciente se
declara apaixonada desde a
primeira sessão e só o confessa um ano depois, para total surpresa do homem.
Ora, ele é perspicaz para
outros assuntos, e isso também é mostrado no segundo
episódio. Além do mais, é
bem-educado, compassivo,
nada arrogante, nem um
pouco misterioso, fala com o
paciente, dá opiniões com a
humildade de apresentá-las
como perguntas e ostenta
uma atitude paternal.
Isso dificilmente desperta
paixões, pois a atitude amistosa não é sedutora. O exato
contrário é a caricatura do
psicanalista; esta sim descobri despertar "paixões" em
nove entre dez pacientes.
A tal suposta atitude "neutra" do ser silencioso, distante e cheio de mistério do analista que fica olhando para
você sem responder à sua
pergunta (uma falta de educação básica e hostil) é, na
verdade, sedutora e idealizável. Paixão supõe idealização. Como idealizar quem se
mostra tão transparente?
Mas, para melhorar, a série
goza de um dos maiores privilégios do cinema americano: tem bons roteiristas, desses de matar de inveja os cineastas brasileiros. Quem
viu dos filmes de Billy Wilder
até a série "A Família Soprano" sabe do que falo. Não há
conversa real tão inteligente
assim. Ninguém tem tanta
presença de espírito.
São horas e horas de duro
trabalho bolando diálogos.
Resulta que as histórias se
mostram capazes de fazer
vislumbrar a complexidade
da mente humana. A série
rompe com a simploriedade
psicanalítica hollywoodiana
(como em "Marnie, Confissões de uma Ladra", em que
toda sua doença vinha de um
único trauma de infância).
Eu pensava que ia me irritar.
Engano meu. Achei bom.
FRANCISCO DAUDT é psicanalista
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