São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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comentário

Pensava que ia me irritar. Engano, achei bom

FRANCISCO DAUDT DA VEIGA
COLUNISTA DA REVISTA DA FOLHA

Magritte, em um de seus quadros, pintou um cachimbo com os dizeres: "Isto não é um cachimbo". Ele estava certo. Não era um cachimbo, era um quadro.
Assim, também, a série "Em Terapia" não é sobre uma terapia; é uma interessante ficção. O realismo é tal que as pessoas poderiam pensar que vêem um processo de psicoterapia tal como ele é. Lembrem-se, então, do cachimbo do Magritte.
O primeiro episódio trata de uma paciente apaixonada pelo terapeuta. Pode parecer um lugar-comum, mas, vistas por um psicanalista (eu, no caso), algumas coisas chamam a atenção. A paciente se declara apaixonada desde a primeira sessão e só o confessa um ano depois, para total surpresa do homem.
Ora, ele é perspicaz para outros assuntos, e isso também é mostrado no segundo episódio. Além do mais, é bem-educado, compassivo, nada arrogante, nem um pouco misterioso, fala com o paciente, dá opiniões com a humildade de apresentá-las como perguntas e ostenta uma atitude paternal.
Isso dificilmente desperta paixões, pois a atitude amistosa não é sedutora. O exato contrário é a caricatura do psicanalista; esta sim descobri despertar "paixões" em nove entre dez pacientes.
A tal suposta atitude "neutra" do ser silencioso, distante e cheio de mistério do analista que fica olhando para você sem responder à sua pergunta (uma falta de educação básica e hostil) é, na verdade, sedutora e idealizável. Paixão supõe idealização. Como idealizar quem se mostra tão transparente?
Mas, para melhorar, a série goza de um dos maiores privilégios do cinema americano: tem bons roteiristas, desses de matar de inveja os cineastas brasileiros. Quem viu dos filmes de Billy Wilder até a série "A Família Soprano" sabe do que falo. Não há conversa real tão inteligente assim. Ninguém tem tanta presença de espírito.
São horas e horas de duro trabalho bolando diálogos. Resulta que as histórias se mostram capazes de fazer vislumbrar a complexidade da mente humana. A série rompe com a simploriedade psicanalítica hollywoodiana (como em "Marnie, Confissões de uma Ladra", em que toda sua doença vinha de um único trauma de infância).
Eu pensava que ia me irritar.
Engano meu. Achei bom.


FRANCISCO DAUDT é psicanalista


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