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CARLOS HEITOR CONY
A estrela, o hóspede e o viajante
Na cabine escura, ao lado de
companheiros de trabalho,
assisto a alguns programas de televisão produzidos pelo grupo Time-Life sobre assuntos científicos.
Na tela iluminada, vejo a aproximação de um satélite artificial
que, anos atrás, saiu da Terra e
percorreu infinitos quilômetros
no espaço. Agora, ele se aproxima
de Saturno e começa a enviar fotos de impressionante nitidez do
planeta cercado de anéis. Diante
de tanta complexidade técnica (a
do universo e a do homem que
constrói essas sondas espaciais),
um amigo exclama: "Vendo essa
maravilha, como é que você não
acredita em Deus?".
Estou extasiado diante de tudo
aquilo, Saturno, seus anéis gasosos, a sonda que perfurou o espaço e faz fotos melhores do que as
minhas, e em condições bem mais
complicadas. Sim, tudo é maravilhoso, divino, encantador. Mas
minha resposta é prosaica, dolorosamente grossa: "Quando urino, meu organismo realiza funções bem mais complexas e maravilhosas. E, como subproduto de
tantas operações das quais nem
tenho consciência, continuo vivo
-o que talvez seja o mau resultado de todo o universo".
Bem, só faltaram me linchar.
Como misturar a grandiosidade
do cosmos com a minha urina,
minha vil bexiga? Tento explicar
que, anos atrás, na primeira semana de vida, no útero de minha
mãe, meu embriãozinho produziu quatro milhões de pequeninas
veias, que mais tarde formariam
meus rins. E mais tarde ainda,
quando se formou por inteiro o
feto, que na pia batismal recebeu
o meu nome, esses quatro milhões
de terminais se ajustaram cada
qual a uma outra veiazinha capilar que recolheria de todo o meu
organismo o liquido inútil e o encaminharia a seus devidos lugares. Essa maravilha mecânica,
científica e técnica em muito superava a imensidão do cosmos ou
a ele se igualava, pois tudo é uma
só e imensa molécula que reproduz, em diferentes escalas, o mesmo fenômeno da matéria organizada ou organizável. Até aí, tudo
bem. Se foi ou não uma inteligência superior que tudo isso projetou e realizou, o problema para
mim fica em aberto. É possível
que exista esse tal arquiteto do
caos.
Em partículas do tempo, esse
caos tornou-se um universo perfeito e maravilhoso. Agora, esse
arquiteto funciona em tempo e
espaço próprios, nada tendo a ver
com um código de ética -a não
ser a própria ética do caos e da
matéria. Extrair dessa inteligência superior uma lei moral, torná-lo ao mesmo tempo arquiteto do
universo e juiz do homem -nisso
vai enorme diferença. Tal como o
universo, o homem obedece a leis
cegas, mutáveis. Marcha com inexorabilidade para um fim- que
é o nada. Se existe algo além da
nossa vã filosofia, esse algo é mesmo o nada, que a vaidade da inteligência humana não aceita.
Para resumir: diante da maravilha que é a matéria em todos os
seus níveis e sobretudo diante do
espírito -um momento fulgurante da matéria-, o homem
não se submete à lei maior que o
rege, o cria e o aniquila. Ele quer
ser diferente das pulgas, dos siris e
das avencas, e para si mesmo inventou um Deus que lhe premiará as virtudes.
Considerações que agora faço
não ficam bem numa crônica breve e cronicamente transitória.
Mas, em resumo, continuo acreditando que tanto mais perfeito é
o universo, mais imperfeita é a
nossa adequação a ele, somos
hóspedes barulhentos de uma estrela cadente e, talvez, decadente.
Jornal não é e nunca será espaço
apropriado para discutir o tema.
E, mesmo se o fosse, não seria
aqui o escriba a pessoa indicada
para tratar desse assunto -falta-lhe engenho e arte para tal e tanto.
O conceito de Deus preenche esse vazio metafísico, como o elo
perdido que na escala antropológica daria a prova final da evolução animal. Aí entra a opção pela
fé, considerada uma virtude, ou
seja, uma força. Virtude deriva de
"virtus", aprende-se isso em são
Tomás de Aquino e no Antonio
Houaiss. De qualquer forma, no
plano estritamente pessoal, considero-me um viajante, e não um
hóspede deste mundo, embora registrado na portaria deste mundo
numa Circunscrição Civil de Vila
Isabel. "Homo viator" -que vai
de um canto a outro procurando
tudo e sabendo de antemão que
encontrará o nada. Tudo que veio
e virá foi e será lucro.
Inclusive esta crônica, metade
teológica, metade astronômica e
totalmente fisiológica, misturando Time-Life, os anéis de Saturno,
meus pobres e fatigados rins, são
Tomás e o Houaiss e até mesmo
uma sórdida repartição do antigo
Distrito Federal, mais exatamente na avenida 28 de setembro (data que comemora a Lei do Ventre
Livre), que até hoje chamamos de
bulevar, um bulevar coberto de
oitis, em cujas sombras nasceu,
viveu e morreu Noel Rosa -e
aqui acrescento mais um dado e
um nome para mostrar a transitoriedade da viagem que, às vezes
mais, às vezes menos, nunca deixa de ser divertida.
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