São Paulo, sexta-feira, 11 de junho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

A estrela, o hóspede e o viajante

Na cabine escura, ao lado de companheiros de trabalho, assisto a alguns programas de televisão produzidos pelo grupo Time-Life sobre assuntos científicos. Na tela iluminada, vejo a aproximação de um satélite artificial que, anos atrás, saiu da Terra e percorreu infinitos quilômetros no espaço. Agora, ele se aproxima de Saturno e começa a enviar fotos de impressionante nitidez do planeta cercado de anéis. Diante de tanta complexidade técnica (a do universo e a do homem que constrói essas sondas espaciais), um amigo exclama: "Vendo essa maravilha, como é que você não acredita em Deus?".
Estou extasiado diante de tudo aquilo, Saturno, seus anéis gasosos, a sonda que perfurou o espaço e faz fotos melhores do que as minhas, e em condições bem mais complicadas. Sim, tudo é maravilhoso, divino, encantador. Mas minha resposta é prosaica, dolorosamente grossa: "Quando urino, meu organismo realiza funções bem mais complexas e maravilhosas. E, como subproduto de tantas operações das quais nem tenho consciência, continuo vivo -o que talvez seja o mau resultado de todo o universo".
Bem, só faltaram me linchar. Como misturar a grandiosidade do cosmos com a minha urina, minha vil bexiga? Tento explicar que, anos atrás, na primeira semana de vida, no útero de minha mãe, meu embriãozinho produziu quatro milhões de pequeninas veias, que mais tarde formariam meus rins. E mais tarde ainda, quando se formou por inteiro o feto, que na pia batismal recebeu o meu nome, esses quatro milhões de terminais se ajustaram cada qual a uma outra veiazinha capilar que recolheria de todo o meu organismo o liquido inútil e o encaminharia a seus devidos lugares. Essa maravilha mecânica, científica e técnica em muito superava a imensidão do cosmos ou a ele se igualava, pois tudo é uma só e imensa molécula que reproduz, em diferentes escalas, o mesmo fenômeno da matéria organizada ou organizável. Até aí, tudo bem. Se foi ou não uma inteligência superior que tudo isso projetou e realizou, o problema para mim fica em aberto. É possível que exista esse tal arquiteto do caos.
Em partículas do tempo, esse caos tornou-se um universo perfeito e maravilhoso. Agora, esse arquiteto funciona em tempo e espaço próprios, nada tendo a ver com um código de ética -a não ser a própria ética do caos e da matéria. Extrair dessa inteligência superior uma lei moral, torná-lo ao mesmo tempo arquiteto do universo e juiz do homem -nisso vai enorme diferença. Tal como o universo, o homem obedece a leis cegas, mutáveis. Marcha com inexorabilidade para um fim- que é o nada. Se existe algo além da nossa vã filosofia, esse algo é mesmo o nada, que a vaidade da inteligência humana não aceita.
Para resumir: diante da maravilha que é a matéria em todos os seus níveis e sobretudo diante do espírito -um momento fulgurante da matéria-, o homem não se submete à lei maior que o rege, o cria e o aniquila. Ele quer ser diferente das pulgas, dos siris e das avencas, e para si mesmo inventou um Deus que lhe premiará as virtudes.
Considerações que agora faço não ficam bem numa crônica breve e cronicamente transitória. Mas, em resumo, continuo acreditando que tanto mais perfeito é o universo, mais imperfeita é a nossa adequação a ele, somos hóspedes barulhentos de uma estrela cadente e, talvez, decadente. Jornal não é e nunca será espaço apropriado para discutir o tema. E, mesmo se o fosse, não seria aqui o escriba a pessoa indicada para tratar desse assunto -falta-lhe engenho e arte para tal e tanto.
O conceito de Deus preenche esse vazio metafísico, como o elo perdido que na escala antropológica daria a prova final da evolução animal. Aí entra a opção pela fé, considerada uma virtude, ou seja, uma força. Virtude deriva de "virtus", aprende-se isso em são Tomás de Aquino e no Antonio Houaiss. De qualquer forma, no plano estritamente pessoal, considero-me um viajante, e não um hóspede deste mundo, embora registrado na portaria deste mundo numa Circunscrição Civil de Vila Isabel. "Homo viator" -que vai de um canto a outro procurando tudo e sabendo de antemão que encontrará o nada. Tudo que veio e virá foi e será lucro.
Inclusive esta crônica, metade teológica, metade astronômica e totalmente fisiológica, misturando Time-Life, os anéis de Saturno, meus pobres e fatigados rins, são Tomás e o Houaiss e até mesmo uma sórdida repartição do antigo Distrito Federal, mais exatamente na avenida 28 de setembro (data que comemora a Lei do Ventre Livre), que até hoje chamamos de bulevar, um bulevar coberto de oitis, em cujas sombras nasceu, viveu e morreu Noel Rosa -e aqui acrescento mais um dado e um nome para mostrar a transitoriedade da viagem que, às vezes mais, às vezes menos, nunca deixa de ser divertida.


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