São Paulo, sexta-feira, 11 de junho de 2004

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Charles mudou a face da música dos Estados Unidos

JON PARELES
DO "NEW YORK TIMES"

Ray Charles, um dos maiores cantores dos Estados Unidos e um músico que levou a essência do soul ao country, jazz, rock, standards e todos os demais gêneros de música com que trabalhou, morreu ontem aos 73 anos.
Charles mudou a face da música dos EUA, em seu mais de meio século de trabalho como cantor, pianista, compositor, maestro e produtor. Era um pianista notável, confortável tanto com o vistoso estilo do boogie-woogie quanto com o swing mais discreto. Mas sua capacidade como músico sempre ficou à sombra de sua voz, um barítono escancarado, inspirado pelo blues, forte, impuro e notoriamente imprevisível.
Charles podia gritar como um cantor de blues da velha escola e sussurrar como um cantor romântico, e usava as falhas e os acidentes de sua voz para iluminar paradoxos emocionais. Mesmo em seus primeiros anos como cantor, ele soava experiente, como alguém que já tivesse visto todas as esperanças e todas as frustrações da humanidade.
Saltando para o falsete, esticando uma palavra e depois a abandonando com uma risada ou um soluço, caindo ao mais íntimo murmúrio e o complementando com um uivo, Charles conseguia soar polido e áspero, fanfarrão ou hesitante, desligado ou lacrimoso, tosco ou devoto. Projetava a exuberância primal de um camponês cantando as canções de colheita e a sofisticação de um músico de bebop, e exibia exaltação, pesar e determinação em uma mesma frase, aparentemente sem esforço.
Nos anos 50, Charles se tornou um arquiteto da música soul ao levar o fervor e a dinâmica do gospel a temas laicos. Mas ele logo superou qualquer categorização. Ao cantar qualquer canção que o agradasse, de "Hallelujah I Love Her So" a "I Can't Stop Loving You", de "Georgia on My Mind" a "America the Beautiful", tomou posse da música dos EUA como se lhe pertencesse por direito. Gravou mais de 60 discos, e sua influência ecoa ao longo de gerações de cantores de rock e soul.
Aos cinco anos, começou a perder a visão, devido a doença não identificada, talvez glaucoma. Mas começara a aprender piano, primeiro com um músico de boogie-woogie chamado Wylie Pitman; também se familiarizou com a música gospel e com o blues rural de músicos locais.
Charles foi enviado à Escola St. Augustine para Crianças Surdas e Cegas, onde estudou de 1937 a 1945. Lá, aprendeu a consertar rádios e automóveis e começou a estudar piano de maneira mais formal. Aprendeu a escrever música em braile e tocava Chopin e Art Tatum. No rádio, ouvia a bandas de swing, cantores country e corais de gospel. "Meus ouvidos eram esponjas, absorvendo tudo", disse ele a David Ritz, que co-escreveu "Brother Ray", sua autobiografia publicada em 1978.
Charles deixou a escola aos 15 anos, depois da morte de sua mãe, e se mudou para Jacksonville para ganhar a vida como músico. Adotou o nome Ray Charles para se distinguir do boxeador Sugar Ray Robinson. Seus modelos iniciais eram dois cantores e pianistas elegantes, Charles Brown e Nat (King) Cole, dos quais cuidadosamente copiava os sucessos e a forma de cantar. Depois de três anos, decidiu se mudar para Seattle. Lá, formou o McSon Trio. Também se viciou em heroína, problema que o afetaria por 17 anos.
Charles gravou seu primeiro single, "Confession Blues", em Seattle, em 1949, com o Maxin Trio. "I've Got a Woman", gravada no estúdio de uma rádio de Atlanta em 54, se tornou o primeiro sucesso de Charles, em 55, dando início a uma série de hits.
Ao mesmo tempo, Charles deixava claro seu vínculo com o jazz, gravando com Milt Jackson e o Modern Jazz Quartet, em 1958, e tocando no festival de Newport.
No começo dos anos 60, Charles praticamente deixou de compor material próprio e passou a seguir seus impulsos ecléticos como intérprete. No álbum de duetos que gravou em 1961 com a cantora de jazz Betty Carter, duas vozes altamente idiossincráticas soavam absolutamente compatíveis.
Em 1965, Charles foi preso por posse de heroína. Passou algum tempo em um sanatório na Califórnia e deixou de tocar por um ano, o único intervelo em sua longa carreira. Quando voltou aos palcos, retomou seu ritmo, com até 10 meses de turnês e um ou dois álbuns por ano. Fundou sua gravadora, a Tangerine. Criou ainda outro selo, o Crossover.
Sua presença nas paradas de sucesso se reduziu, mas ele continuava a ser muito respeitado. Em 1971, se juntou a Aretha Franklin em um show que ela lançou como "Live at Fillmore West".
Nos anos 80, Charles voltou às paradas, na categoria country. Charles produziu "Friendship", álbum de duetos com 10 astros country, como Willie Nelson.
Em 1986, Charles foi um dos primeiros músicos conduzidos ao Rock and Roll Hall of Fame. Recebeu um Grammy pelo conjunto de sua carreira em 1987. Em 1990, ele gravou comerciais para a Diet Pepsi, cantando "you've got the right one, baby, uh uh".
Nas canções que compôs e naquelas das quais tomou posse, Charles era um resumo da música dos EUA, do swing das big bands ao country, da música da Broadway ao gospel. Com profundo conhecimento de estilos e assuntos do coração, Charles compôs, arranjou e improvisou seu lugar na criação de uma cultura americana que terminou incorporando o soul sem admitir barreiras.


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