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Charles mudou a face da música dos Estados Unidos
JON PARELES
DO "NEW YORK TIMES"
Ray Charles, um dos maiores
cantores dos Estados Unidos e
um músico que levou a essência
do soul ao country, jazz, rock,
standards e todos os demais gêneros de música com que trabalhou,
morreu ontem aos 73 anos.
Charles mudou a face da música
dos EUA, em seu mais de meio século de trabalho como cantor,
pianista, compositor, maestro e
produtor. Era um pianista notável, confortável tanto com o vistoso estilo do boogie-woogie quanto com o swing mais discreto. Mas
sua capacidade como músico
sempre ficou à sombra de sua voz,
um barítono escancarado, inspirado pelo blues, forte, impuro e
notoriamente imprevisível.
Charles podia gritar como um
cantor de blues da velha escola e
sussurrar como um cantor romântico, e usava as falhas e os acidentes de sua voz para iluminar
paradoxos emocionais. Mesmo
em seus primeiros anos como
cantor, ele soava experiente, como alguém que já tivesse visto todas as esperanças e todas as frustrações da humanidade.
Saltando para o falsete, esticando uma palavra e depois a abandonando com uma risada ou um
soluço, caindo ao mais íntimo
murmúrio e o complementando
com um uivo, Charles conseguia
soar polido e áspero, fanfarrão ou
hesitante, desligado ou lacrimoso,
tosco ou devoto. Projetava a exuberância primal de um camponês
cantando as canções de colheita e
a sofisticação de um músico de
bebop, e exibia exaltação, pesar e
determinação em uma mesma
frase, aparentemente sem esforço.
Nos anos 50, Charles se tornou
um arquiteto da música soul ao
levar o fervor e a dinâmica do gospel a temas laicos. Mas ele logo superou qualquer categorização. Ao
cantar qualquer canção que o
agradasse, de "Hallelujah I Love
Her So" a "I Can't Stop Loving
You", de "Georgia on My Mind" a
"America the Beautiful", tomou
posse da música dos EUA como
se lhe pertencesse por direito.
Gravou mais de 60 discos, e sua
influência ecoa ao longo de gerações de cantores de rock e soul.
Aos cinco anos, começou a perder a visão, devido a doença não
identificada, talvez glaucoma.
Mas começara a aprender piano,
primeiro com um músico de boogie-woogie chamado Wylie Pitman; também se familiarizou
com a música gospel e com o
blues rural de músicos locais.
Charles foi enviado à Escola St.
Augustine para Crianças Surdas e
Cegas, onde estudou de 1937 a
1945. Lá, aprendeu a consertar rádios e automóveis e começou a estudar piano de maneira mais formal. Aprendeu a escrever música
em braile e tocava Chopin e Art
Tatum. No rádio, ouvia a bandas
de swing, cantores country e corais de gospel. "Meus ouvidos
eram esponjas, absorvendo tudo", disse ele a David Ritz, que co-escreveu "Brother Ray", sua autobiografia publicada em 1978.
Charles deixou a escola aos 15
anos, depois da morte de sua mãe,
e se mudou para Jacksonville para
ganhar a vida como músico. Adotou o nome Ray Charles para se
distinguir do boxeador Sugar Ray
Robinson. Seus modelos iniciais
eram dois cantores e pianistas elegantes, Charles Brown e Nat
(King) Cole, dos quais cuidadosamente copiava os sucessos e a forma de cantar. Depois de três anos,
decidiu se mudar para Seattle. Lá,
formou o McSon Trio. Também
se viciou em heroína, problema
que o afetaria por 17 anos.
Charles gravou seu primeiro
single, "Confession Blues", em
Seattle, em 1949, com o Maxin
Trio. "I've Got a Woman", gravada no estúdio de uma rádio de
Atlanta em 54, se tornou o primeiro sucesso de Charles, em 55,
dando início a uma série de hits.
Ao mesmo tempo, Charles deixava claro seu vínculo com o jazz,
gravando com Milt Jackson e o
Modern Jazz Quartet, em 1958, e
tocando no festival de Newport.
No começo dos anos 60, Charles
praticamente deixou de compor
material próprio e passou a seguir
seus impulsos ecléticos como intérprete. No álbum de duetos que
gravou em 1961 com a cantora de
jazz Betty Carter, duas vozes altamente idiossincráticas soavam
absolutamente compatíveis.
Em 1965, Charles foi preso por
posse de heroína. Passou algum
tempo em um sanatório na Califórnia e deixou de tocar por um
ano, o único intervelo em sua longa carreira. Quando voltou aos
palcos, retomou seu ritmo, com
até 10 meses de turnês e um ou
dois álbuns por ano. Fundou sua
gravadora, a Tangerine. Criou
ainda outro selo, o Crossover.
Sua presença nas paradas de sucesso se reduziu, mas ele continuava a ser muito respeitado. Em
1971, se juntou a Aretha Franklin
em um show que ela lançou como
"Live at Fillmore West".
Nos anos 80, Charles voltou às
paradas, na categoria country.
Charles produziu "Friendship",
álbum de duetos com 10 astros
country, como Willie Nelson.
Em 1986, Charles foi um dos
primeiros músicos conduzidos ao
Rock and Roll Hall of Fame. Recebeu um Grammy pelo conjunto
de sua carreira em 1987. Em 1990,
ele gravou comerciais para a Diet
Pepsi, cantando "you've got the
right one, baby, uh uh".
Nas canções que compôs e naquelas das quais tomou posse,
Charles era um resumo da música
dos EUA, do swing das big bands
ao country, da música da Broadway ao gospel. Com profundo conhecimento de estilos e assuntos
do coração, Charles compôs, arranjou e improvisou seu lugar na
criação de uma cultura americana
que terminou incorporando o
soul sem admitir barreiras.
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