São Paulo, terça-feira, 11 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Primeira pedra


Era sempre um acaso que uns pecados fossem investigados enquanto outros eram apagados

ESTÁVAMOS numa dessas margens das cidades miseráveis às quais se chega por descampados abandonados, barrancos escarpados e ribanceiras poeirentas que se precipitam muito feio feito corredeiras num caminho empedrado pelo meio das veredas. Eram pedras e veredas bem pequenas e espremidas, mas também retorcidas, pontudas e ardidas, que avançavam picando nos solados dos calçados como se estivéssemos descalços, fazendo do difícil que beirasse o insuportável.
Ninguém reclamava.
Também não era confortável o que havia de fazermos por ali...
Ali nos reunimos em nome da justiça, por incrível que pareça, já que injustiça mesmo era o que vinha sendo praticado. Praticavam a desdita de sua civilização com a eficiência de uma ciência que se aplica com cuidado e precisão, de maneira que só a ignorância fazia experiência entre os ratos que serviam de cobaia para os tratos e teorias que inventavam. Na verdade estávamos cansados daquilo, disso tudo, uns dos outros e até mesmo indignados com aqueles que mudavam.
Mudavam uns por ignorância do que encontrariam, outros porque quisessem muito mais do que podíamos ter oferecido e havia quem quisesse apenas se mover sem saber o que pudesse alcançar. Esses inocentes que vagaram a esmo pagaram a mesma pena na cadeia dos culpados que se aproveitaram de sua viagem...
Assim era sempre um azar, uma sacanagem, um acinte ou um acaso que uns pecados fossem investigados e expiados enquanto outros eram apagados e esquecidos como se nem tivessem sido praticados. Não entendíamos os recados e os avisos que nos mandavam sempre para o mesmo lugar. Esperar. Esperar até chegar, como se o mundo rodando houvesse de passar por aí e nos garantir contra os que quisessem vir nos roubar.
Estávamos perdidos de nos encontrar desarmados pelas leis que os mais poderosos se faziam para resguardar seu benefício de nossa inveja. Juntavam exércitos pagos sem vergonha contra os cidadãos de respeito como se nem fôssemos a própria imagem e semelhança desses mercenários. Na desesperança de quem percebe o que não vai acontecer, nunca soubemos a quem recorrer que não fôssemos nós próprios.
Nós próprios nos achamos responsáveis em certas ocasiões em que nos tomaram os pés pelas mãos, nos derrubaram no chão, repartiram nossas casas, nossas crias e nossas coisas. Fomos passados tantas vezes para trás que passamos a ver o futuro pelas costas, vindo ao encontro dos nossos calcanhares pra tirar satisfação.
Paramos de exigir atenção, depois de pedir proteção e por fim de implorar o perdão de quem quer que fosse. Decidimos tomar uma atitude. Pagaríamos pra ver, se necessário, não fosse nosso o espetáculo, já que havia indignação de sobra entre os que se juntavam para fazer o que achávamos mal feito. Isso de achar ou de fazer o bem dependia de quem fosse mais amigo. A propósito disso, nossos olhares se cruzavam como se fôssemos conhecidos. Depois se encruzilhavam desconfiados por gestos esquisitos de se encontrar. Muitos esquivos nos conheciam de ver passar ou ouvir dizer, mas nem esses, nem nossos inimigos se cumprimentavam reciprocamente.
Era pra ser indiferente, eficiente e impessoal...
Trouxeram então a tal mulher. Não era nova tal uma criança nem velha de um tanto que não pudessem reparar num pedaço ou noutro.
Vinha esbaforida e estabanada de um esforço, recusando ser arrancada do pesadelo em que estava, já que sabia a realidade que aguardava. Aos presentes explicaram que não prestava, que vendia o que não devia e que não valia o que comia...
Não que os outros prestassem, valessem ou comessem melhor ou mais que aquela, mas aquela era a vez dela e não seria eu a lhe tomar o lugar. Os parentes cada vez mais distantes atestaram prontamente o que diziam e parecia que não havia o que esperar que não fosse o combinado.
Teve lá um coitado, cabeludo e mal lavado que se pôs na frente de todo mundo, dizendo que os problemas e os percalços eram comuns e que ninguém era melhor que ela, por mais vagabunda que fosse...
Eu não vim para essa polêmica... Abaixei e apanhei uma do chão. Escolhi a que nem era pesada, mais tinha lá umas bordas finas, pra rasgar o que encontrasse pela frente.
Mirei bem... Ali estava ela... E ele...
Atirei mesmo. Aqui ninguém é santo.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Bibliotecas dão nova fama a Bogotá
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.