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FERNANDO BONASSI
Primeira pedra
Era sempre um acaso que uns pecados fossem investigados enquanto outros eram apagados
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ESTÁVAMOS numa dessas margens das cidades miseráveis
às quais se chega por descampados abandonados, barrancos escarpados e ribanceiras poeirentas
que se precipitam muito feio feito
corredeiras num caminho empedrado pelo meio das veredas. Eram
pedras e veredas bem pequenas e espremidas, mas também retorcidas,
pontudas e ardidas, que avançavam
picando nos solados dos calçados
como se estivéssemos descalços, fazendo do difícil que beirasse o insuportável.
Ninguém reclamava.
Também não era confortável o
que havia de fazermos por ali...
Ali nos reunimos em nome da justiça, por incrível que pareça, já que
injustiça mesmo era o que vinha
sendo praticado. Praticavam a desdita de sua civilização com a eficiência de uma ciência que se aplica com
cuidado e precisão, de maneira que
só a ignorância fazia experiência entre os ratos que serviam de cobaia
para os tratos e teorias que inventavam. Na verdade estávamos cansados daquilo, disso tudo, uns dos outros e até mesmo indignados com
aqueles que mudavam.
Mudavam uns por ignorância do
que encontrariam, outros porque
quisessem muito mais do que podíamos ter oferecido e havia quem quisesse apenas se mover sem saber o
que pudesse alcançar. Esses inocentes que vagaram a esmo pagaram a
mesma pena na cadeia dos culpados
que se aproveitaram de sua viagem...
Assim era sempre um azar, uma
sacanagem, um acinte ou um acaso
que uns pecados fossem investigados e expiados enquanto outros
eram apagados e esquecidos como
se nem tivessem sido praticados.
Não entendíamos os recados e os
avisos que nos mandavam sempre
para o mesmo lugar. Esperar. Esperar até chegar, como se o mundo rodando houvesse de passar por aí e
nos garantir contra os que quisessem vir nos roubar.
Estávamos perdidos de nos encontrar desarmados pelas leis que os
mais poderosos se faziam para resguardar seu benefício de nossa inveja. Juntavam exércitos pagos sem
vergonha contra os cidadãos de respeito como se nem fôssemos a própria imagem e semelhança desses
mercenários. Na desesperança de
quem percebe o que não vai acontecer, nunca soubemos a quem recorrer que não fôssemos nós próprios.
Nós próprios nos achamos responsáveis em certas ocasiões em
que nos tomaram os pés pelas mãos,
nos derrubaram no chão, repartiram nossas casas, nossas crias e nossas coisas. Fomos passados tantas
vezes para trás que passamos a ver o
futuro pelas costas, vindo ao encontro dos nossos calcanhares pra tirar
satisfação.
Paramos de exigir atenção, depois
de pedir proteção e por fim de implorar o perdão de quem quer que
fosse. Decidimos tomar uma atitude. Pagaríamos pra ver, se necessário, não fosse nosso o espetáculo, já
que havia indignação de sobra entre
os que se juntavam para fazer o que
achávamos mal feito. Isso de achar
ou de fazer o bem dependia de quem
fosse mais amigo. A propósito disso,
nossos olhares se cruzavam como se
fôssemos conhecidos. Depois se encruzilhavam desconfiados por gestos esquisitos de se encontrar. Muitos esquivos nos conheciam de ver
passar ou ouvir dizer, mas nem esses, nem nossos inimigos se cumprimentavam reciprocamente.
Era pra ser indiferente, eficiente e
impessoal...
Trouxeram então a tal mulher.
Não era nova tal uma criança nem
velha de um tanto que não pudessem reparar num pedaço ou noutro.
Vinha esbaforida e estabanada de
um esforço, recusando ser arrancada do pesadelo em que estava, já que
sabia a realidade que aguardava. Aos
presentes explicaram que não prestava, que vendia o que não devia e
que não valia o que comia...
Não que os outros prestassem, valessem ou comessem melhor ou
mais que aquela, mas aquela era a
vez dela e não seria eu a lhe tomar o
lugar. Os parentes cada vez mais distantes atestaram prontamente o
que diziam e parecia que não havia o
que esperar que não fosse o combinado.
Teve lá um coitado, cabeludo e
mal lavado que se pôs na frente de
todo mundo, dizendo que os problemas e os percalços eram comuns e
que ninguém era melhor que ela,
por mais vagabunda que fosse...
Eu não vim para essa polêmica...
Abaixei e apanhei uma do chão. Escolhi a que nem era pesada, mais tinha lá umas bordas finas, pra rasgar
o que encontrasse pela frente.
Mirei bem... Ali estava ela... E ele...
Atirei mesmo. Aqui ninguém é
santo.
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