São Paulo, sábado, 11 de julho de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Colagem antiamnésia


"Espelho Diário" é "making of" da instalação multimídia protagonizada por Rosângela Rennó


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"ESPELHO DIÁRIO" é a versão em livro de uma instalação multimídia da artista plástica e fotógrafa Rosângela Rennó e da escritora Alícia Duarte Penna. O título faz referência ao diário sensacionalista inglês "Daily Mirror" e a matéria-prima é semelhante: dramas cotidianos colhidos em jornais brasileiros.
Na exposição, que percorreu Nova York, Paris e Lisboa, essas histórias eram recontadas em vídeo, com os monólogos de Alícia interpretados por Rosângela. No livro, os textos estão agrupados dois a dois, em páginas espelhadas, seguidos de "stills" (imagens congeladas de vídeo) que recompõem a sequência original.
A mãe de um menino assassinado no dia do aniversário de um ano; uma colunável na piscina ("Eu dentro de meu Christian Dior!"); a funcionária de fast-food ("O corpo está emprestado para eles"); uma sequestrada em seu cativeiro; a golpista que fuma um cigarro no banco da praça.
Ao todo são 133 monólogos de mulheres que às vezes parecem se repetir ou surgem nos mesmos trajes e locações de outras -como a indicar um destino comum. Com um detalhe fundamental: nessa colagem de enredos, Rosângela interpreta outras Rosângelas, ou seja, episódios vividos por homônimas da artista. Esse dado, exterior ao material exposto, faz parte de um dispositivo recorrente na arte conceitual: importa menos o efeito estético do objeto em si do que o procedimento que o determina.
Podemos ler e ver "Espelho Diário" como instantâneo de uma realidade na qual as identidades se tornam intercambiáveis no roldão da violência urbana ou da solidão narcisista, sendo resgatadas pelo olhar das artistas como "uma espécie de ação antiamnésia" -na definição de Rosângela em entrevista de outro contexto, sobre seu trabalho com retratos de presidiários e fotografias descartadas de álbuns de família.
Mas também é possível conectar esse livro-instalação à tendência contemporânea de transformar o próprio corpo em suporte -como ocorre nos trabalhos de Cindy Sherman, Nan Goldin, Orlan ou Sophie Calle (que recentemente esteve na Flip e lançou o "diário" fotográfico "Histórias Reais").
A diferença é que "Espelho Diário" inverte o sentido desse voyeurismo que opera no limite do abjeto e do grotesco: mesmo nos momentos de ironia e humor, Rosângela se despersonaliza, chega a dar voz a Rosângelas de além-túmulo, acolhendo generosamente existências melancólicas, resumidas na fala de uma das mulheres: "O mundo acaba aqui, no corpo da gente".


ESPELHO DIÁRIO

Autoras: Alícia Duarte Penna e Rosângela Rennó
Editora: Imprensa Oficial/ Edusp/Editora UFMG
Quanto: R$ 80 (480 págs.)
Avaliação: ótimo


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