São Paulo, sábado, 11 de julho de 1998

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LIVRO - LANÇAMENTO
Textos de Hitchcock contêm lição de cinema

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Hitchcock sabia se mostrar e se esconder ao mesmo tempo. Criou uma imagem pública -a do gordo bonachão e bem-humorado que adorava produzir medo em cada espectador- que acabou por torná-lo o mais cineasta de todos os tempos.
Soube associar essa imagem a um tipo de cinema comercial -o suspense- que lhe rendeu milhões, cuja profundidade passou quase despercebida dos especialistas até os anos 50.
Por isso mesmo, podia-se temer que a reunião de seus escritos, promovida por Sidney Gottlieb, fosse apenas uma extensão da arte do despiste, que Hitchcock sabia praticar tão bem.
"Hitchcock por Hitchcock", o volume que a Imago publica agora no Brasil desmonta esse preconceito. Desmonta também a idéia de que tudo de importante a dizer sobre o mestre do suspense já fora dito nos vários estudos críticos publicados a seu respeito, na biografia de Donald Spoto ou na longa entrevista concedida a François Truffaut (o célebre "Hitchcock/Truffaut", editado pela Brasiliense).
A principal vantagem do trabalho de Gottlieb foi buscar os artigos escritos na Inglaterra -de onde Hitchcock saiu em 1939, com destino a Hollywood. Menos consagrado internacionalmente, o diretor britânico toca em vários aspectos da produção de um filme -da gênese do roteiro à montagem e ao lançamento- e aprofunda as lições de cinema que deu na entrevista a Truffaut.
Se "Hitchcock/Truffaut" dissecava antes de tudo a mise-en-scène -o trabalho específico do autor de filmes-, em "Hitchcock por Hitchcock", ele detém-se em temas tão variados quanto a relação com os produtores, a direção de atores ou a influência de Alma, sua mulher, no resultado final dos filmes.
Os textos variam de um sisudo (e precioso) verbete da Britânica até um descompromissado "Discurso após o Jantar da Scrren Producers Guild", uma peça de humor impecável.
Ao longo do calhamaço de 368 páginas, o leitor notará inúmeras repetições, retomadas de exemplos ou argumentos. É um problema irrelevante, até porque essas repetições atestam a importância que Hitchcock dava a certos assuntos -como a cena do assassinato do marido, em "Sabotagem" (1936), provavelmente a sequência de que mais se orgulhava até o assassinato de Janet Leigh em "Psicose" (1960).
Outros momentos são reveladores, como quando expõe um conhecimento profundo da evolução de sua arte (como, por exemplo, ao discorrer sobre a montagem entre os russos ou ao comparar a perseguição tal como concebida por Griffith e por ele próprio.
Algumas mudanças podem ser observadas em sua trajetória. Assim, na Inglaterra ele lembrará mais de uma vez que, no cinema, "somos controlados pelo apelo popular". Uma espécie de lamento quanto à natureza de sua arte que o leva, por exemplo, a contar o final que realmente gostaria de ter usado em "Chantagem e Confissão", seu primeiro filme sonoro, bem diferente (e mais interessante) do "happy end" que acabou filmando.
Nos EUA, esse tipo de consideração desaparece, dando lugar a um Hitchcock conformado (mas não infeliz) com as limitações que a fama de mestre do suspense acabaram por lhe impor.
Por várias razões, Hitchcock é, ainda hoje, o cineasta que mais ensinou cinema a qualquer cinéfilo. Não se interessava, ou fingia não se interessar, por outra coisa que não a forma. Por isso mesmo, seus comentários sobre o sentido de seus filmes aqui é quase inexistente. Em troca, são raros os cineastas que se dispõem a partilhar com o espectador suas experiências de forma tão generosa e, por vezes, detalhada.
Se acrescentarmos a isso que Hitchcock é um dos cineastas que mais filmes têm editados em vídeo, a lição fica completa: basta comparar os textos às imagens preciosas para o espectador curioso perceber que por trás do entretenimento escondem-se um homem complexo e um legado artístico que está entre os mais ricos deste século.


Livro: Hitchcock por Hitchcock
Organizador: Sidney Gottlieb
Lançamento: Imago
Quanto: R$ 35 (368 págs.)



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