São Paulo, quarta-feira, 11 de agosto de 2004

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MARCELO COELHO

Eu também tenho medo dela

Você acha que ela é "fofinha"? Então não leia este artigo. Ah, mas você não deve achar que ela é fofinha. Coitada! Ela pertence a um pesadelo e não sabe disso. Estou falando da menina que faz o anúncio da Embratel com a Ana Paula Arósio.
No mundo real, ela se chama Rafaela e tem quatro anos. Sobre essa criança seria abusivo fazer qualquer comentário. Já a personagem que criaram... Quanta diferença! Ou melhor, quanta semelhança! Valeria ser estudada como um caso marcante de teratologia publicitária.
Parece que o comercial já saiu de cartaz. Não sei, quase não vejo televisão. Acontece que, durante as férias, fiquei mais tempo do que devia freqüentando a internet -e no site do Orkut centenas de pessoas se organizaram em comunidades para falar mal da pequena sósia da Ana Paula.
Uma comunidade se chama "Tenho Medo da Anã Arósio" -e as opiniões que ali se registram são às vezes bem pesadas. Outra, mais "light", é a "Tenho Medo da Mini-Arósio". Discute-se todo tipo de hipótese: a menina é um robô, a menina tem olhos com raio laser, ela é noiva do Chuck, o brinquedo assassino dos filmes de terror, e pode ser ainda sobrinha do Fofão -outra lembrança sinistra na vida de quem passou a infância vendo programas trash na TV.
A comunidade dos apavorados com a pequena Arósio logo diversificou seus interesses, explorando novos medos, novos fantasmas, novos monstros. Michael Jackson é o campeão, pelo que pude ver. Mas também não foram poucos os que mencionaram ter medo da Elza Soares ou do Clodovil. Sem contar algumas fobias mais específicas, como a de ficar preso num elevador com Arnaldo Antunes, ou a de encarar os pêlos do Tony Ramos.
Em toda essa linha de associações bizarras, haveria provavelmente uma origem comum. Sem dúvida, o pavor que se confessa é o de algum tipo de abuso sexual. O que faz horrível a pequena Arósio é o batom, a maquiagem, o cabelo arranjado num instituto de beleza. Penso mais numa mulher adulta miniaturizada do que numa boneca dotada de vida própria.
Natural que a figura de Michael Jackson fosse a primeira a aparecer nesse contexto. Não só pelas acusações de pedofilia que cercam o ídolo pop mas também por toda a quantidade de manipulação tecnológica que se aplicou sobre sua aparência. A suposta pedofilia de Jackson é também um narcisismo, uma autopedofilia.
Ora, o internauta que especula sobre a Ana Paula Arósio em miniatura talvez se entregue à sensação de miniaturizar-se a si mesmo; brinca de criança, sem dúvida, ao dizer que fulano ou sicrano o amedrontam. Entre as comunidades de maior sucesso no Orkut estão as que discutem, de forma bem-humorada, os "traumas de infância" -vomitar na perua da escolinha, fazer xixi na cama, esse tipo de coisa.
Desconfio que o horror à sexualização precoce da menina Arósio seja o horror à nossa própria regressão, à ameaça que pesa sobre nós de não nos termos livrado totalmente da infância.
Os anúncios da Embratel vinham havia um bom tempo explorando as possibilidades da manipulação fisionômica da modelo. Como no caso do garoto da Bom Bril, Ana Paula Arósio se tornou uma espécie de campo de provas, de porquinho-da-índia (hum, gostei dessa comparação) num laboratório fotográfico ou num estúdio de computação gráfica. Ela já está há alguns anos fazendo o anúncio da Embratel, e os publicitários tinham de imaginar variações em torno do tema: foi assim que a fantasiaram de japonesa, de espanhola, de esquimó ou coisa parecida, para mostrar que as ligações internacionais tinham baixado de preço.
Sem ter mais como variar sua aparência, cuidaram então de reproduzi-la. Foi o erro fatal. Não é fácil apreender com exatidão qual era, afinal de contas, a campanha do 21 -que tipo de oferta estava sendo lançada naquele momento: os descontos e promoções de empresas telefônicas não têm, de qualquer modo, o dom de chamar a minha atenção.
Pensei que a mini-Arósio fosse alguma oferta de celular para quem já tem o telefone fixo. Ou uma advertência contra a clonagem de aparelhos. Depois fui investigar: o anúncio era para dizer que, se você fizer uma ligação de dois minutos, tem direito a um minuto grátis. A mini-Arósio é uma meia-Arósio, assim como um é a metade de dois, formando o número 21. Eureca!
A reprodução por cissiparidade, a luz laboratorial, a alegria vibrátil e protozoária do anúncio então se explicam. Nada mais vulgar do que uma garota seminua anunciando carros ou cervejas. Os anúncios da Embratel com Ana Paula Arósio sempre foram de uma austeridade e assepsia a toda prova. Talvez porque na frase "faz um 21" já houvesse algum subentendido que me escapa.
O fato é que, se Xuxa, a rainha dos baixinhos, engravidou com requintes de puritanismo, a propaganda da Embratel representa um passo adiante -a clonagem da mulher adulta se revela como contrapartida da sexualização infantil.
Claro, a mistura de infância com sexualização é a chave de toda propaganda: o que se presume, quase sempre, é que o consumidor tenha o intelecto de uma criança de cinco anos e o desejo sexual de um adulto plenamente desenvolvido. É de dar medo mesmo, com certeza.


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