São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 2005

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COMIDA

Em visita ao Brasil, a chef Mari Hirata fala sobre os segredos dos doces japoneses

Sutileza oriental

LUCRECIA ZAPPI
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois do chá, vem o doce. No Japão, diferentemente da Europa, onde se armam verdadeiras fortalezas de açúcar à hora da sobremesa, o doce tem ainda ao lado do chá uma função simples e nobre: enfatizar o gosto da bebida e fazer saltar o paladar.
"Ser uma sobremesa é, para o doce japonês, algo recente no Japão. É uma influência ocidental." Quem diz isso é Mari Hirata, 45, que, em São Paulo, é chef japonesa e, em Tóquio, é chef brasileira. Essa dupla fidelidade na cozinha é enriquecida pela pâtisserie, a grande expressão da chef, que estudou e trabalhou nove anos na França e confere às suas criações de açúcar um tom único, mas universal.
"Como o chá da cerimônia do chá é extremamente amargo, você precisa de um docinho na boca, para depois tomar a bebida. O doce tem papel secundário, é parte do equilíbrio de sabores. É diferente dos países ocidentais, onde o doce em si já é uma sobremesa", diz a paulistana que mora em Tóquio há 17 anos, onde cozinha, dá cursos e faz consultoria para restaurantes e casas de chá.
"Hoje, para aprender as melhores técnicas de pâtisserie, tem muito mais gente indo para Tóquio do que para Paris. Você vai aprender mais técnica no Japão. Tem a ver com o caráter do japonês, que quer tudo perfeito", diz Hirata.
O purismo é tanto, segundo Hirata, que a busca pelo sutil chega a transformar receitas clássicas. "Ah, isso era o mil-folhas?", ironiza Hirata. "Tudo tem que ser mais leve, mais bonito, menos doce, mais com o gosto essencial da coisa, o que não deixa de ser um caminho para a pâtisserie", diz ela. "Não dá para colocar no céu a pâtisserie japonesa, mas, em termos de domínio de técnica, eles são os melhores hoje em dia."
Essa ortodoxia do fazer remete a uma ilha de portos fechados onde a paisagem natural sempre foi austera. "Antigamente só tinha caqui, damasco, nozes e a laranjinha kinkan. Não tinha morangos. Mesmo as cerejeiras, tão conhecidas pela flor no Japão, dão uma fruta que não dá para comer: é minúscula, só tem semente e é hiperazeda", conta Hirata.
O termo wagashi, que designa o doce tradicional japonês, preparado à base de arroz, feijão e gelatina (ou açúcar), é recente. Data do fim da era Taishô (1912-1926). O nome serve de contraponto à nova pâtisserie tradicional ("yogashi"), importada do Ocidente, onde o carro-chefe são as receitas francesas.
A palavra pode ser nova, mas o wagashi surgiu depois do século 6, época da chegada do budismo ao Japão. Com a tradição do cultivo de arroz, em Yayoi, passou-se a preparar bolos e doces do cereal para festas religiosas. Entre os séculos 8 e 12, a corte, em Kyoto, pôs ênfase na arte dos doces de arroz. Ao lado do chá, vindo da China no século 12, os wagashis se tornaram peças ornamentais.
Outra influência externa nas receitas tradicionais foram os ovos, trazidos com os portugueses no século 16. "Casterá", da palavra "Castela", é, segundo Hirata, um dos bolos mais populares do Japão, que é um pão-de-ló preparado com mel.
Até hoje, as cerimônias codificadas do chá estão permeadas por uma experiência estética e sensual. Essa tradição que remete à natureza evoca a memória, de acordo com Hirata. "A presença das estações é fundamental: cada receita está associada a uma delas. Pode ser o detalhe mais simples do mundo, como uma folhinha embaixo do doce, mas a pessoa que vai comer o bolinho vai olhar para essa folha e vai dizer: "Ah, é inverno, o que eu estava fazendo no inverno do ano passado?"."
Em julho, a chef sempre está em São Paulo e, mesmo de férias, acaba dando cursos-relâmpago, como o fez na Fazenda do Pinhal na semana passada. Diz que fazer doce japonês aqui não é difícil, até porque os ingredientes que servem de base não faltam.
"Eu já vi ágar-ágar no Japão vindo do Brasil. Os brasileiros deviam usar mais. Além de ter muita fibra, limpa toda a parede intestinal. Hoje em dia, tem uma moda tão grande de ágar-ágar por lá que eu tenho dificuldade de encontrá-lo no Japão", diz a cozinheira.
Mas, mesmo com tanto ágar-ágar, arroz e feijão por perto, os restaurantes japoneses no Brasil acabam deixando a sobremesa em suspenso. Poucos surpreendem com criações mais elaboradas que tempuras de sorvete que, de japonês, não têm nem a crosta.
Hirata tem uma explicação simples para o fenômeno da não-sobremesa. "Cada japonês prepara seu prato dentro da boca. O arroz vai com todos os pratos e, ao mesmo tempo, limpa a boca dos outros sabores. A medida é assim: uma colher de shoyu, uma colher de açúcar. Sempre vai ter o açúcar na receita [dos pratos principais]", diz Hirata.
Com refeições tão adocicadas fica difícil, segundo a chef, beliscar uma sobremesa. Mas elas existem, e o "doce pelo doce" tem crescido nos restaurantes no Japão. Para a chef, a sobremesa é fundamental como um aperto de mão. "Receber as pessoas para jantar é uma maneira de o chef se comunicar com o cliente. Se, no final, ele te serve uma fruta, dá a impressão que o aperto de mão final foi meio seco."
Segundo ela, cada doce tem uma função de acordo com o prato que foi servido anteriormente. E ingredientes ocidentais em harmonia com os orientais muitas vezes provocam o estalo de paladar desejado. "Tem coisas que combinam. Se você come sukiyaki, que é um prato mais forte, até dá para servir chocolate no final", diz Hirata.
"Desde que seja equilibrado, desde que a pessoa saia de lá "digerível'", avisa. "Todo chef deveria ser assim, não mostrar o que sabe fazer de mais espetacular, mas pensar na refeição em si. Muitos precisam mostrar caviar, foie gras e uma supersobremesa no final. Mas uma coisa mais simples tocaria as pessoas mais fundo do que toda uma ostentação."


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