São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2007

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Crítica/romance

Relançamento comemora 150 anos de "Madame Bovary"

Edição inclui íntegra do processo que acusava a obra de ferir a religião e a moral

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Crêem que eu seja apaixonado pelo real, enquanto o detesto: pois que por ódio do realismo é que empreendi este romance." O romance realista em essência (se é que existe algo como uma essência do real), "Madame Bovary", foi escrito em nome não da realidade, mas por ódio a ela. Aí está a melhor definição de qualquer grande romance realista, como é o caso deste, que é considerado "o romance dos romances".
É só ler Machado de Assis, Eça de Queiroz, Émile Zola e até o naturalista Aluísio Azevedo para iniciar ou dar continuidade a um processo de repulsa pela realidade, esse real que insistimos em concordar que é o único e o mais verdadeiro: o real histórico e circunstancial.
Nunca resta pedra sobre pedra dos personagens desses romances, e a palavra que sempre se encaixa melhor para definir qualquer romance realista é: mediocridade. São invariavelmente retratos da mediocridade pequeno-burguesa, de suas hipocrisias mesquinhas, seus pequenos mal-entendidos, seus conformismos convenientes e sempre a pior sombra de todas: o fantasma da adaptação.
Adaptar-se é o objetivo do pequeno-burguês do romance realista e em nome desse "ideal", tudo o mais parece irrelevante. É em nome dele, por exemplo, que um personagem de Tchekhov, pequeno funcionário público, morre. Por ter acidentalmente cuspido na careca de um funcionário de maior patente e, não conseguindo se desculpar com ele, angustiar-se até à morte.

150 anos da publicação
Também é em função da adaptação que o pai de uma das namoradas de Brás Cubas chora no enterro da filha. Afinal, não importava tanto que a filha morresse, mas que viessem mais convidados! O real é mesmo odiável e isso aparece melhor ainda nesta nova edição de "Madame Bovary", comemorativa dos 150 anos de sua primeira edição, feita em capítulos no folhetim "Revue de Paris", em 1856.
Nela, além do romance, consta também o processo integral feito contra o autor pelo ministério público francês, sob a acusação de que o romance era lascivo e feria a religião e a moral.
Trata-se de um discurso tão inacreditável para a atualidade e, certamente, também para a época que mais parece um capítulo de Flaubert, em que ele tivesse se esmerado na composição do ridículo dos personagens. Segundo o Sr. Ernest Pinard, advogado imperial, Emma Bovary teria sofrido duas "quedas", que são seus dois adultérios. A emoção de Emma ao consumar seu primeiro adultério e exclamar a frase que denuncia seu espírito sonhador: "Tenho um amante! Tenho um amante!", se transforma, nas palavras de Pinard, em "glorificação das volúpias do adultério", o que seria "mais imoral do que a própria queda".
Flaubert, de acordo com o acusador, infelizmente pinta Madame Bovary "bem demais", e com isso permite "que a lascívia e a leviandade cheguem ao coração ainda mais leviano de moças, algumas vezes casadas, que não terão forças contra a sedução dos sentidos e dos sentimentos"! E, para coroar a acusação, diz que "a arte sem regras não é mais arte; é como uma mulher que tirasse todas as roupas".

Pequena-burguesia
Pois é exatamente isso. Flaubert tira todas as roupas da pequena-burguesia de uma província francesa e com isso, pela exploração do particular, desnuda o medo que encobre quase todas as práticas pequeno-burguesas, lá como em Paris ou em São Paulo, então como agora. Flaubert (1821-1880) foi absolvido da acusação, mas o medo que nos protege não tem tempo nem idade e, entre outras coisas, é por isso que sempre precisamos continuar a ler e reler "Madame Bovary".


MADAME BOVARY
Autor:
Gustave Flaubert
Tradução: Fúlvia M. S. Moretto
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 55 (360 págs.); nas livrarias a partir de 27 de agosto
Avaliação: ótimo


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