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Crítica/romance
Relançamento comemora 150 anos de "Madame Bovary"
Edição inclui íntegra do processo que acusava a obra de ferir a religião e a moral
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Crêem que eu seja
apaixonado pelo
real, enquanto o
detesto: pois que por ódio do
realismo é que empreendi este
romance." O romance realista
em essência (se é que existe algo como uma essência do real),
"Madame Bovary", foi escrito
em nome não da realidade, mas
por ódio a ela. Aí está a melhor
definição de qualquer grande
romance realista, como é o caso
deste, que é considerado "o romance dos romances".
É só ler Machado de Assis,
Eça de Queiroz, Émile Zola e
até o naturalista Aluísio Azevedo para iniciar ou dar continuidade a um processo de repulsa
pela realidade, esse real que insistimos em concordar que é o
único e o mais verdadeiro: o
real histórico e circunstancial.
Nunca resta pedra sobre pedra dos personagens desses romances, e a palavra que sempre
se encaixa melhor para definir
qualquer romance realista é:
mediocridade. São invariavelmente retratos da mediocridade pequeno-burguesa, de suas
hipocrisias mesquinhas, seus
pequenos mal-entendidos,
seus conformismos convenientes e sempre a pior sombra de
todas: o fantasma da adaptação.
Adaptar-se é o objetivo do
pequeno-burguês do romance
realista e em nome desse
"ideal", tudo o mais parece irrelevante. É em nome dele, por
exemplo, que um personagem
de Tchekhov, pequeno funcionário público, morre. Por ter
acidentalmente cuspido na careca de um funcionário de
maior patente e, não conseguindo se desculpar com ele,
angustiar-se até à morte.
150 anos da publicação
Também é em função da
adaptação que o pai de uma das
namoradas de Brás Cubas chora no enterro da filha. Afinal,
não importava tanto que a filha
morresse, mas que viessem
mais convidados! O real é mesmo odiável e isso aparece melhor ainda nesta nova edição de
"Madame Bovary", comemorativa dos 150 anos de sua primeira edição, feita em capítulos no
folhetim "Revue de Paris", em
1856.
Nela, além do romance, consta também o processo integral
feito contra o autor pelo ministério público francês, sob a acusação de que o romance era lascivo e feria a religião e a moral.
Trata-se de um discurso tão
inacreditável para a atualidade
e, certamente, também para a
época que mais parece um capítulo de Flaubert, em que ele tivesse se esmerado na composição do ridículo dos personagens. Segundo o Sr. Ernest Pinard, advogado imperial, Emma Bovary teria sofrido duas
"quedas", que são seus dois
adultérios. A emoção de Emma
ao consumar seu primeiro
adultério e exclamar a frase que
denuncia seu espírito sonhador: "Tenho um amante! Tenho
um amante!", se transforma,
nas palavras de Pinard, em
"glorificação das volúpias do
adultério", o que seria "mais
imoral do que a própria queda".
Flaubert, de acordo com o acusador, infelizmente pinta Madame Bovary "bem demais", e
com isso permite "que a lascívia e a leviandade cheguem ao
coração ainda mais leviano de
moças, algumas vezes casadas,
que não terão forças contra a
sedução dos sentidos e dos sentimentos"! E, para coroar a acusação, diz que "a arte sem regras não é mais arte; é como
uma mulher que tirasse todas
as roupas".
Pequena-burguesia
Pois é exatamente isso. Flaubert tira todas as roupas da pequena-burguesia de uma província francesa e com isso, pela
exploração do particular, desnuda o medo que encobre quase todas as práticas pequeno-burguesas, lá como em Paris ou
em São Paulo, então como agora. Flaubert (1821-1880) foi absolvido da acusação, mas o medo que nos protege não tem
tempo nem idade e, entre outras coisas, é por isso que sempre precisamos continuar a ler
e reler "Madame Bovary".
MADAME BOVARY
Autor: Gustave Flaubert
Tradução: Fúlvia M. S. Moretto
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 55 (360 págs.); nas livrarias a partir de 27 de agosto
Avaliação: ótimo
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