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ANTONIO CICERO
O segredo grego
Não é possível negar a capacidade que a Grécia teve de se apropriar das formas culturais
VINTE ANOS atrás, Martin Bernal, professor de estudos mediterrâneos e orientais na
Universidade de Cornell, EUA, provocou escândalo entre estudiosos da
cultura clássica ao publicar "Black
Athena" ("Atena Negra"), em que
defende que grande parte da cultura
grega é de origem africana, em primeiro lugar, e asiática, em segundo.
A África a que ele se refere é sobretudo o Egito. Uma outra tese do livro
-de menor importância, mas que
justifica o título- é a de que os egípcios teriam sido negróides.
Bernal não pretende que suas
idéias sejam absolutamente novas.
Elas correspondem, de acordo com
ele, a uma revisão do que denomina
o "modelo antigo" das origens gregas. Segundo, por exemplo, Heródoto, no século 5 a.C., foi com os egípcios e com os asiáticos que os gregos
aprenderam os rudimentos da religião. Observe-se também a extrema
reverência que Platão manifesta para com a religião e os mistérios do
Egito. O "modelo antigo", comenta
Bernal, dominou os estudos da Antigüidade até o fim do século 18.
Esse modelo foi rejeitado nessa
época, ao se constituir a disciplina
moderna dos Estudos Clássicos. Minimizou-se, então, a importância da
influência egípcia e semítica sobre a
Grécia. Segundo Bernal, isso se deu
principalmente por razões ideológicas. "Não ficava bem que a Grécia,
agora considerada o berço da Europa", diz, "tivesse sido civilizada por
africanos e asiáticos, que, para a nova "ciência racial", haviam passado a
ser considerados como categoricamente inferiores".
Assim, por volta de 1840, produziu-se o "modelo ariano", segundo o
qual a cultura grega teria surgido basicamente a partir das conquistas
dos "arianos", vindos do norte. Considerada como absolutamente original, a cultura grega passou a ser contrastada com as culturas que a cercavam como a luz com a escuridão.
Como poderia esta influenciar
aquela? Lembro que foi, de fato, esse
o modelo que aprendi nas aulas de
história, no Brasil.
Bernal, com toda razão, afirma
que, ainda que a Grécia tenha sofrido invasões de etnias indo-européias vindas do norte, isso não autorizaria a negar a influência egípcia e
asiática na formação da sua cultura.
Ele está certo ao criticar o modelo
ariano. Entretanto, o seu próprio
"modelo antigo revisto" foi rapidamente assimilado ao "afrocentrismo", uma ideologia que, nos seus
momentos mais extremos, afirma,
por exemplo, que a cultura grega foi
roubada da egípcia. Pois bem, longe
de se dissociar de tais tolices, Bernal
declara, por exemplo, que "os acadêmicos podem preferir a palavra que
está na moda, "apropriação", mas a
palavra "roubo" não é inteiramente
inadequada em tais casos".
Bernal está errado. Apropriação
não é eufemismo para roubo. Roubo
é uma apropriação ilícita, em que o
proprietário do objeto roubado é lesado. Por que considerar ilícitas as
apropriações interculturais? Os gregos se apropriaram, por exemplo, do
proto-alfabeto fenício. Não só, ao fazê-lo, não lesaram os fenícios mas,
tendo transformado esse proto-alfabeto num alfabeto perfeitamente fonético, os gregos o legaram, em princípio, ao resto do mundo.
Não é possível negar nem a capacidade que a Grécia teve de se apropriar de todas as formas culturais
que lhe interessaram, nem a originalidade do que foi por ela produzido a partir de tais apropriações. Essa
originalidade não se deveu a "raça"
nenhuma. Ainda que a Grécia continental tenha sofrido invasões de etnias indo-européias, essas se terão
sem dúvida fundido a outras etnias
no verdadeiro crisol étnico que era o
Mediterrâneo oriental. É o que permite a Isócrates, no século 4 a.C., declarar que "são chamados gregos antes os que participam da nossa educação do que os que participam de
uma raça comum".
Qual o segredo da originalidade da
Grécia? Talvez Arnold Hauser tenha
chegado perto de descobri-lo ao falar de Homero. Para ele, o "espírito
sem lei e irreverente" dos príncipes
aqueus da idade heróica deve-se ao
fato de que eram piratas e saqueadores que haviam obtido uma série fulminante de vitórias sobre povos
mais civilizados. Com isso, emanciparam-se da sua religião ancestral,
ao mesmo tempo que desprezavam
as religiões dos povos conquistados,
exatamente por serem religiões de
povos conquistados. Pois foi mais ou
menos assim que os helenos conseguiram se conservar: unidos em torno de Homero e da língua grega,
abertos ao turbilhão cultural mediterrâneo e singularmente livres,
tanto de qualquer Igreja quanto de
qualquer Estado central.
http://antoniocicero.blogspot.com
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