São Paulo, terça, 11 de agosto de 1998

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O VERDADEIRO MICHELET
Viúva alterou manuscritos originais do historiador

SYLVIA COLOMBO
Editora-assistente da Ilustrada

As intermináveis enxaquecas de Michelet o levavam a dar longos passeios pelo célebre cemitério parisiense Père Lachaise (onde hoje ele próprio está enterrado).
Nas suas andanças, o historiador indagava-se sobre o significado de seu ofício: por que investigar o passado de pessoas que já não viviam mais?
Não imaginava ele, porém, que depois da própria morte, sua história ficaria comprometida pela ação de sua segunda mulher, Athénais Mialaret, com quem se casara em 1849 -tinha ele então 50 anos e ela, 24.
Em 1950, os arquivos de Michelet foram abertos para a consulta pública. Os pesquisadores que manusearam aqueles originais perceberam que a viúva tinha alterado os manuscritos das principais obras do historiador francês.
Sua intervenção não chegou a inserir idéias ou argumentos que alterassem a trama de suas narrativas, mas suprimiu a repetição dos temas -que era mais do que uma questão formal de estilo do autor, pois consistia em sua forma de construir imagens.
Paul Viallaneux foi um dos responsáveis pelo reestabelecimento de parte dos textos originais. Ele próprio se mostrou complacente com relação à viúva e tentou atenuar suas intervenções afirmando que ela cuidava de "rechear e bordar" o texto, mas sem alterar o seu conteúdo.
O historiador Lucien Febvre (1978-1956) foi um dos que mais se revoltou ao saber das alterações. Em 1942, deu um importante curso no Collége de France intitulado "Michelet e a Renascença". Nele, defendia que Michelet era o forjador do termo "renascimento" e um dos precursores de uma historiografia a que ele se filiara por meio dos "Annales". Estes viriam a estabelecer o que se convencionou chamar de "história das mentalidades".
Já Roland Barthes, autor do ensaio "Michelet" (1991), foi mais incisivo e ácido em relação às intenções da viúva. Ele entendeu que as alterações impetradas por ela violaram uma característica básica de Michelet: a repetição dos temas, que usava para reforçar suas idéias sobre a "alma nacional", seu principal objeto de estudo.
Para Barthes, esta evocação constante dos mesmos temas era muito mais importante do que a retórica do historiador. Sob este ponto de vista, a viúva não teria compreendido a obra do marido. Aviltou, assim, a grande preocupação de Michelet desde as caminhadas pelo cemitério: descobrir o significado de guardar a memória dos que já estavam mortos.



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