São Paulo, terça, 11 de agosto de 1998

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CINEMA

Almodóvar acorda público em Gramado

Divulgação
Almodóvar nas filmagens de "Carne Trêmula", exibido em Gramado


INÁCIO ARAUJO
enviado especial a Gramado

Os primeiros aplausos sinceros deste 26º Festival de Cinema de Gramado aconteceram na segunda-feira à tarde, após a exibição de "Carne Trêmula" na sessão "Premières Gramado 98".
O novo filme de Pedro Almodóvar -que deve entrar em cartaz em setembro- serviu não só para compensar a fragilidade (às vezes, tortura pura e simples) da mostra competitiva, como para confirmar a adesão radical do diretor espanhol ao melodrama, já perceptível em seu filme anterior.
Nos seus primeiros filmes (como "Áta-me", entre outros), Almodóvar flertava com esse elemento da tradição hispânica, mas o humor é que se impunha. Agora, o cinismo parece mais distante, o humor existe, mas não é o que se impõe.
É claro, Almodóvar não faz um filme à velha maneira. Seu olhar é indireto -fundamenta-se em filmes antigos e em sua distorção, e apóia-se num romance de Ruth Rendell. O conjunto da situação tende a criar o simulacro, mas os paroxismos sentimentais acentuam-se, como maneira de conhecer a Espanha, seus seres e seus movimentos.
A história diz respeito a Victor, filho de uma prostituta que nasce num ônibus, em 1970, num momento de estado de exceção, em plena era franquista. Vinte anos depois, esse rapaz se verá envolvido numa cena policial: ao ser repelido por Elena, uma drogada com quem transara uma semana antes, é visto por dois policiais. A tentativa de prisão termina com um tiro desferido nas costas de um policial, que fica paraplégico.
É o início de um quinteto amoroso que mais vale não tentar resumir. Basta dizer que Victor vai para a cadeia, embora não tenha desferido o tiro que vitimou o policial, e que na prisão desenvolve planos mirabolantes de vingança, que consistem, basicamente, em tornar-se o melhor amante do mundo, transar uma noite com Elena, deixá-la apaixonada e, então, abandoná-la.
A insânia não é menor do que a de Elena, que descobrimos tratar-se de uma jovem milionária, e que reencontramos casada com o policial paraplégico por sentimento de culpa.
O pivô de toda a história, no entanto, é Pancho, o segundo policial em ação na noite em que se desencadeiam todos os mal-entendidos. Ele bebe mais ou menos em tempo integral e vive batendo na mulher, que julga traí-lo. É o representante de uma Espanha machista, perversa, em que os sentimentos se impõem pelo medo.
Os demais de certo modo apontam para uma mudança de mentalidade, ainda que tênue. Os personagens parecem viver na corda bamba, entre um passado ainda muito próximo e um presente que se constrói a duras penas.
Almodóvar descreve, assim, um grupo de personagens permanentemente à beira do abismo, mas se dá o direito de construir um quase happy end (se bem que entre esse "quase" e a plenitude que sugere um verdadeiro happy end exista uma distância infinita).
A notar, por fim, que o espanhol filma em panavision, dominando perfeitamente o formato, e que volta a se impor como um dos cineastas que melhor filmam cenas de sexo no mundo.
As "Premières", essa é uma impressão unânime por aqui, tendem a ser o refresco dos espectadores, em meio a uma competição que se anuncia decepcionante. O início não poderia ser melhor.



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