São Paulo, segunda-feira, 11 de setembro de 2000

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ARIANO SUASSUNA
Sociologia e Filosofia da Cultura

ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna


GILBERTO FREYRE E A ARTE

Em 1972 , no prefácio da "Farsa da Boa Preguiça", escrevi: "Muito raramente leio qualquer coisa de Sociologia. Tenho um amigo sociólogo a quem, de vez em quando, digo, brincando, que não levo a Ciência dele a sério porque a Sociologia perde em movimentação e grandeza épica para a História; perde em segurança e eficácia técnica para as Ciências; perde em atualidade para a Imprensa; e perde em Beleza para a Literatura". Quer dizer: para as pessoas como eu, a Sociologia (não por acaso originada no quadro mecanicista do pensamento positivista) jamais poderá atingir as dimensões e a beleza da Filosofia da Cultura, tal como foi pensada e escrita por um Bergson ou por um Nietzsche. E foi levando tal fato em conta que, em 1962, no artigo que escrevi sobre minhas relações com o Movimento Regionalista de 26, afirmei:
"Na minha opinião, é ótimo que a sociologia gilbertiana se torne cada vez mais filosófica e menos sociológica. Acho, por exemplo, um livro como "Ordem e Progresso" mais humano e mais liberto de certos materialismos (positivistas) do que "Casa-Grande & Senzala"; se bem que não concorde com a desconfiança que este despertou a princípio em certos católicos, achando, pelo contrário, que ele veio abrir um caminho para livrar a Sociologia de vários vícios de origem. Que tenha algumas dessas marcas de origem, conforme salientou Luiz Delgado em artigo que reconhecia, com justiça, a grandeza da obra, é explicável, dado seu caráter desbravador. E é justo assinalar, também, que as perspectivas da obra gilbertiana vêm se alargando à medida que ela caminha no tempo, renovando-se e procurando-se (...). Assim, discordando da maioria, acredito que os grandes momentos de Gilberto Freyre são aqueles quase todos em que ele deixa falar o intuitivo que há nele. Não acho, como José Lins do Rego, que nele "é o poeta que se liga ao sociólogo e não o larga nunca". Penso que Gilberto Freyre caminha cada vez mais no sentido de conseguir uma síntese, atingindo aquele "conhecimento poético" de que fala Gabriel Marcel. E lamento mesmo, às vezes, que ele não tenha encerrado ainda o ciclo de seus ensaios sociológicos para, sem as limitações do social, tentar a interpretação puramente filosófica da nossa realidade".
Outra coisa que sempre tentei em relação a Gilberto Freyre foi julgá-lo como escritor, não levando em conta sua visão política direitista sobre o Brasil e o mundo de Língua Portuguesa. Por exemplo: discordei lealmente dele numa das sessões do Seminário de Tropicologia, em que, na sua frente, marquei minha posição, contrária à sua, a respeito da independência das colônias portuguesas na África. Mesmo quando discordava de Gilberto, porém, nunca deixei de anotar que seu pensamento era expresso numa obra literariamente bem escrita. Enquanto isso, no Brasil e em Portugal, não havia nenhuma obra que, com a mesma dimensão, nos oferecesse, pela Esquerda, um pensamento articulado e novo que se pudesse opor ao dele. Literariamente, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes nunca chegaram nem perto de Gilberto Freyre; o que, na minha opinião, se deve ao fato de que, assim como o Regionalismo foi um Neonaturalismo do qual terminei tendo de me afastar, o Marxismo, o Socialismo "científico" de Marx, é um Neopositivismo tão estreito, mecanicista e castrador quanto o pensamento de Augusto Comte (que, também não por acaso, é o fundador da Sociologia). Por isso o que me agradava mais na obra de Gilberto Freyre eram os momentos em que, deixando de lado a Política e a Sociologia, falava sobre a Literatura e as outras Artes. O que me levou a escrever o seguinte, no artigo de 1962 ao qual me venho referindo:
"Quanto à Pintura, num artigo publicado, se não me engano, antes de 1930, a respeito da nossa natureza como fonte de recriação para nossos pintores, fala Gilberto Freyre "de amarelos e roxos espessos, oleosos, gordos, às vezes dando vida a formas que são meios-termos grotescos entre o vegetal e o humano, verdadeiros plágios da anatomia humana, do sexo do homem e da mulher, formas no verão alto chupadas pelo sol de todo esse sangue, de toda essa cor, de toda essa espécie de carne; e quase reduzida aos ossos dos cardos; a relevos duros, ascéticos, angulosos, assexuais". Essas palavras são cheias de sugestões para um grande pintor disposto a se abrir diante de nossas formas. E não posso me impedir de lembrar a pintura de Francisco Brennand, que elas pareciam anunciar. Imagino sua novidade no tempo em que foram escritas, porque elas são novas ainda hoje. Mas fica-se de repente perplexo ao vê-lo exaltar, no mesmo artigo, a medíocre pintura mexicana, que está longe de realizar, em relação à sua região, o que Gilberto Freyre sonhava para a nossa".
Lembro que o artigo que venho transcrevendo é de 1962, de modo que o Brennand do qual nele falo é o dos florais, o dos frutos e vegetais da Zona da Mata que o nosso grande artista então pintava. E esclareço que, quando me referi à "medíocre pintura mexicana", foi porque sempre achei Diego Rivera um pintor menor, a ele preferindo -e de longe!- sua mulher, Frida Kahlo.


(Continua na próxima semana.)


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